A natureza do contrato deve ser vista primordialmente através do seu conteúdo, de acordo com o constante em suas cláusulas.
Com base nesse entendimento, a 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo negou a rescisão de um contrato de cessão dos direitos de 27 músicas, firmado entre os anos 60 e 80 entre uma editora e os cantores Roberto Carlos e Erasmo Carlos.
Na ação, os artistas alegaram que o contrato seria apenas de edição, isto é, de prestação de serviço voltado a explorar comercialmente as composições musicais. Segundo eles, haveria só uma intermediação da editora, sem transferência dos direitos. A editora, por sua vez, sustentou que o contrato previa, sim, a cessão dos direitos das 27 músicas.
A Justiça de São Paulo concordou, em primeiro e em segundo grau, com a tese da editora. O desembargador Álvaro Passos, relator do processo, afirmou que, no contrato, há expressa colocação das condições de transferência dos direitos da obra autoral em todos os seus aspectos. Ou seja: incluía a cessão dos direitos das canções, e não apenas a edição das mesmas.
“Conforme a lei (Lei 5.988/1973, vigente à época dos fatos) e o contrato assinado, há uma cessão de direitos, na qual há a alienação dos direitos autorais, e não apenas uma concessão, que seria temporária. Logo, com o negócio celebrado, a editora passou a ser a titular dos trabalhos, sempre ressalvando os direitos morais (contrato translativo)”, afirmou.
De acordo com o magistrado, incide ao caso o artigo 85 do Código Civil de 1916, então vigente, com a seguinte redação: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem.” Logo, disse o relator, seja pela sua denominação ou por seu próprio conteúdo, “não se pode negar” que se trata de um contrato de cessão de direitos intelectuais.
“Sequer se admite dizer que deve ser feita a interpretação restritiva de contratos de cessão, seja com base no artigo 3º da então em vigor Lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973, ou com o texto da atual Lei de Direitos Autorais (que, saliente-se, não incide no caso em apreço), em razão de o texto dos contratos elaborados serem expressos e claros quanto ao seu objeto, não se tratando de hipótese que apresenta conteúdo com possibilidade de interpretação ou conteúdo impreciso”, disse.
Para o magistrado, trata-se de uma negociação feita entre pessoas maiores e capazes, não de caráter de consumo, de modo que, mesmo que os cantores aleguem ser um contrato de adesão, não há demonstração de vício de consentimento, o qual, inclusive, já teve o seu decurso de prazo decadencial.
“Isso sem olvidar que até o momento do início do conflito aqui trazido neste processo, desde as décadas de 60 a 80, quando surgiram as assinaturas dos instrumentos, houve contínuo cumprimento por parte dos demandantes, convalidando o seu teor. Em suma, além de o teor do contrato ser claro e objetivo no sentido de cessão dos direitos das obras, o seu cumprimento foi regularmente atendido ao longo de décadas”, pontuou Passos.
Além disso, o desembargador afastou o argumento da defesa de que o cantores eram muito jovens quando assinaram o contrato e não tinham experiência nem conhecimento do alcance que as músicas teriam. “Tampouco cabe falar em insegurança jurídica com a manutenção do negócio, pois ela surgiria, na verdade, no movimento contrário de desfazer os contratos de cessão que possuem um objeto claro e expresso de transferência de titularidade dos direitos”, explicou.
Somado a isso, o magistrado disse que o texto do contrato é claro e prevê expressamente que a transferência de titularidade foi realizada sem exceção, englobando todos os modos de execução e reprodução, quer os existentes quando da elaboração do documento, quer os que vieram a ser inventados ou aperfeiçoados posteriormente, incluindo o uso das músicas em streaming.
“Se o contrato se refere justamente à exploração do trabalho de modo público, com sua execução, irradiação, transcrição, dentre outras, o streaming integra tal forma pública da exploração, sendo certo que não poderia ser previsto o seu surgimento, ou qualquer outro modo que todavia não foi elaborado neste momento, quando da celebração aqui discutida”, disse Passos ao confirmar que as músicas também podem ser reproduzidas em aplicativos de streaming.
A decisão foi por maioria de votos (3 a 2), em julgamento estendido. Essa foi a terceira ação semelhante julgada pelo TJ-SP em que Roberto Carlos e Erasmo Carlos questionavam contratos envolvendo músicas compostas por eles. Em todos os casos, as editoras saíram vencedoras.
Processo 0026199-21.2021.8.26.0100