Cesar Chacon, hoje com 37 anos, cruzou a fronteira da Venezuela para o Brasil em 2017 assolado pela falta de oportunidades em um país que passou por um colapso econômico a partir de 2016. Ao chegar em Boa Vista, capital de Roraima, notou que enfrentaria situações tão difíceis quanto as que vinha tentando superar no seu país de origem. Por isso, no primeiro momento, veio sozinho e deixou a esposa e dois filhos. “Não falava português. Não entendia nada. Uma vez, trabalhando como diarista em uma fazenda ali pela região, me pediram para abrir um buraco e eu não entendi o que era para fazer”, conta.
Além do idioma, Chacon explica que foi difícil encontrar emprego em Boa Vista, pois a própria movimentação massiva de refugiados venezuelanos fez com que as ofertas ficassem mais escassas em relação a quantidade de gente buscando trabalho. Cansado da dinâmica de ter que sair pelas ruas à procura de “bicos” para trabalhar em diárias de ajudante de pedreiro ou qualquer outra função manual que pudesse desempenhar, resolveu se mudar para São Paulo.
Na maior cidade da América Latina, deparou-se com outra dificuldade que conseguiu superar somente com ajuda de colegas venezuelanos que já estavam mais adaptados. “Alugar uma casa ou apartamento por meio de uma imobiliária é muito difícil pra gente. Pedem três meses de fundo [garantia]. É difícil ter essa quantia de dinheiro, pois em São Paulo o aluguel é caro”, diz, explicando que a saída foi morar em uma casa com outros venezuelanos que alugavam diretamente com o proprietário, sem a intermediação de uma imobiliária.
Esse roteiro de dificuldades que se apresentaram a Chacon se repete para grande parte dos refugiados, seja no Brasil, seja em outro país. Com persistência, muitos conseguem encontrar os caminhos para driblar esses obstáculos, enquanto uma parte acaba ignorando a ajuda de ONGs e governos e não raramente termina em situações de exploração.
A busca por documentação é um passo importante que costuma fazer a diferença na trajetória futura e, apesar de relatos apontarem desencontros de informações na Polícia Federal ou postos de atendimento públicos, especialistas no tema elogiam os esforços do governo federal e das prefeituras para agilizar o processo.
“Comparado a outros países, o Brasil é um dos melhores lugares nesse sentido do governo ajudar na acolhida. Sei porque tenho amigos que saíram da Venezuela para outros países como Peru e Colômbia e falam que por lá é bem mais difícil do que foi pra mim aqui”, confirma Chacon.
Conforme explica a chefe do escritório em São Paulo do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), Maria Beatriz Nogueira, refugiados, em geral, são pessoas que chegam com diferentes níveis de vulnerabilidade decorrentes de um deslocamento forçado por um motivo ou outro.
“A depender de onde a pessoa vem, a vulnerabilidade pode se intensificar. No caso dos venezuelanos, por exemplo, o fato de ter se formado uma comunidade maior no Brasil ajudou a dar o suporte a quem chega. Diferentemente da população afegã, que não encontra uma comunidade da mesma nacionalidade estabelecida no país e não recebe essa ajuda de colegas nos primeiros passos.”
Para ajudar, o Acnur tem aumentado esforços para conectar a inclusão de imigrantes em situação de vulnerabilidade à agenda corporativa ESG (sigla em inglês que corresponde à responsabilidade ambiental, social e governança).
A ideia é conscientizar companhias de todos os portes e áreas de que oferecer oportunidades para um refugiado enriquece a imagem social e ainda traz boas chances de ter um profissional acima da média em questão de produtividade, pois uma pessoa que busca reconstruir a vida tende a se engajar mais.
O trabalho consiste em buscar parceiros na iniciativa privada para aumentar a oferta de cursos gratuitos de português e valorizar as experiências prévias dos refugiados, inclusive as que não tem relação direta com o emprego que as empresas têm para ofertar.
“São pessoas que normalmente querem muito trabalhar e podem ser contratadas mesmo antes de ter a documentação definitiva”, afirma Nogueira. “Há temas que são muito caros à agenda ESG como clima, raça, gênero e educação. Mas a questão dos refugiados é transversal. Toda a diversidade está sempre presente nessas populações e também contempla o princípio de não deixar ninguém para trás. Existe uma janela de oportunidade para investimento de impacto.”
Queremos testar a tese de que a população refugiada pode estar dentro de modelos de negócios e nem sempre ligada ao aspecto humanitário”
— Beatriz Nogueira
No fim de outubro a agência da ONU realizará em São Paulo, pelo segundo ano consecutivo, o Fórum Empresas com Refugiados, no qual reúne principalmente profissionais de recursos humanos para conhecerem casos bem-sucedidos de empresas que já contrataram pessoas que chegaram ao Brasil em situações de vulnerabilidade.
Contudo, no quesito habitação, ainda faltam bons exemplos de projetos para evitar que os recém-chegados sejam obrigados a se acomodar em moradias lotadas ou afastadas dos bairros onde estão as ofertas de trabalho.
A esperança está agora em um projeto-piloto que está em andamento em São Paulo e, na visão do Acnur, pode servir de modelo para outras cidades do mundo. Financiado pela Internacional Finance Corporation (IFC), ligada ao Banco Mundial, o “Refúgio na Cidade” prevê a inclusão de pessoas refugiadas e migrantes em soluções habitacionais a preços acessíveis na zona central da cidade.
A iniciativa é executada pela empresa Citas, uma administradora imobiliária que está restaurando edifícios comerciais antigos e adaptando para moradia no modelo chamado de retrofit. No projeto-piloto, de 3% a 5% das unidades residenciais serão direcionadas a refugiados e imigrantes de baixa renda com preços abaixo do mercado.
“Para os meus investidores é interessante porque cerca de 5% das unidades residenciais de um prédio costumam ficar vazias e não geram o retorno desejado. Então, por que não trazer um projeto social para o negócio se não prejudica o dinheiro do investidor e agrega uma visão mais ampla de responsabilidade social para o empreendimento”, explica a CEO da Citas, Isadora Rebouças.
Embora a iniciativa conte com o apoio financeiro da IFC, a executiva explica que o projeto, que já está em execução no edifício Chrysler, localizado na Praça da República, no centro de São Paulo, não tem o objetivo de dar subsídio exagerado porque a ideia é justamente desenvolver um modelo que possa ser replicado em larga escala.
O refugiado que tenha interesse em alugar um dos apartamentos reservados para esse público poderá escolher entre pagar um aluguel 30% mais barato – com o desconto aplicado o valor ficaria próximo a R$ 1.200 mensal – ou começar pagando perto de R$ 200 com o valor do aluguel aumentando progressivamente ao longo de seis meses até se igualar ao normal praticado no mesmo prédio.
“Ajuda a não comprometer substancialmente a renda da pessoa num primeiro momento de adaptação nos primeiros meses”, comenta Rebouças, adicionando que a Citas já mapeou 280 prédios no centro paulistano que podem ser adquiridos no futuro e eventualmente reproduzir o mesmo modelo.
Chacon não vai se inscrever para alugar um dos apartamentos do edifício Chrysler porque nos três anos em São Paulo já conseguiu trazer a esposa e os dois filhos para uma casa do tamanho adequado à família. Mas diz que algo parecido teria sido interessante para os seus primeiros meses no país.
Ainda assim, o projeto lhe trouxe outro benefício. Junto com o também venezuelano Javier Mata, ele participou de um curso de capacitação que preparou uma turma de refugiados para trabalhar como marceneiro e estão montando todo o mobiliário das unidades. Na visão do IFC e da Citas, a ideia foi estimular a formação em uma área em que o setor da construção percebe uma falta de mão de obra qualificada.
“Preparar eles para trabalhar como marceneiros no empreendimento gerou um engajamento em toda a cadeia de produção, afirma Nogueira, do Acnur, reforçando que o projeto tem apelo para atacar duas frentes simultaneamente: habitação e emprego. “Com o Refúgio na Cidade, queremos testar a tese de que a população refugiada pode estar dentro de modelos de negócios e nem sempre ligada ao aspecto humanitário. É um tema que pode ser pensado dentro da perspectiva ESG sem deixar de notar a contribuição que essas pessoas podem dar para o dia a dia na cidade”, conclui.
Fonte: VALOR ECONÔMICO