A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) se debruçou, na sessão da última terça-feira (05/02), sobre a possibilidade de um vídeo considerado ofensivo à religião islâmica ser retirado da Internet. Sem se aprofundar na discussão sobre a relação entre o direito de expressão e o direito à liturgia, o colegiado manteve, por unanimidade, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que rejeitou pedido para que o conteúdo fosse excluído do YouTube.
O Recurso Especial foi apresentado pela Sociedade Beneficente Muçulmana, que que recorreu de uma decisão de 2015 da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). No processo, a entidade religiosa recorre para que a Google Brasil, responsável pela plataforma de vídeos Youtube, retire do ar um dos vídeos vídeo da música “Passinho do Romano“, do cantor Mc Dadinho.
O vídeo, que se tornou famoso à época de seu lançamento, exibe uma coreografia de funk que surgiu no Jardim Romano, Zona Leste de São Paulo. Hoje, com 65 milhões de visualizações, a música ainda está no ar, hospedada no canal do autor do vídeo no YouTube, conhecido pelo nome “Fezinho Patatyy”.
A queixa da Socidade Beneficente é que o vídeo do Passinho faz uso de trechos do alcorão recitados por um sheik muçulmano, um cidadão especializado nos ensinamentos da religião. Para a entidade o fato feriria o inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal, que define que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
A Sociedade também pediu a anulação de um acórdão proferido em 2015 pelo TJSP, alegando falta de fundamentação na decisão e violação aos artigos 489 e 1022 do Código de Processo Civil.
O advogado que representa a entidade no caso, que durante sua sustentação oral afirmou ser católico apostólico romano, contou ter se compadecido com a situação, a ponto de defender a causa pro bono. “Eu senti a profunda dor que eles sentiram”, afirmou Alberto Luis Camelier da Silva. “Aquele vídeo feriu terrivelmente o sentimento religioso”, disse. Segundo o advogado, houve o vilipêndio à liturgia do credo muçulmano, uma vez que as palavras do profeta Maomé devem ser sempre proferidas e utilizadas em estado de pureza.
Durante a sustentação oral, Camelier destacou que nos trechos onde a reza em árabe era utilizada haveria também o som de bombas caindo, o que poderia impregnar estereótipos sobre os seus fiéis.
Apesar de advogados do Google estarem presentes na sessão os representantes não fizeram sustentação oral. Isso porque o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, afirmou que proferiria voto favorável à companhia.
Conhecimento apenas processual
Em seu voto Villas Bôas Cueva não se ateve ao mérito do processo, ou seja, se o direito à liberdade de expressão, presente no inciso IV do artigo 5º da Constituição, prevalece sobre o direito à liturgia, presente no inciso VI da Carta. O ministro considerou que a resposta à questão cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF).
O magistrado tratou apenas da temática processual do caso, considerando que a decisão de 2ª instância não violou os artigos 489 e 1022 do Código de Processo Civil. Os dispositivos preveem que as decisões judiciais devem ser devidamente fundamentadas.
“Não se vislumbra a nulidade do acórdão recorrido, visto que o tribunal, na origem, apresentou de forma clara o objeto de sua ponderação”, afirmou o ministro. “Desse modo, tendo em vista que o recurso em análise não aponta a violação de nenhuma norma infraconstitucional de direito material […] tais como as previstas, por exemplo, no Marco Civil da Internet e no Código Civil, é impossível o reexame do mérito”, definiu o relator.
Passinho no Supremo
O caso do “Passinho do Romano”, segundo seus advogados, também tramita no STF. Na suprema corte, porém, o caso ainda não possui numeração, uma vez que o recurso especial foi, em um primeiro momento, inadmitido.
A expectativa de Camelier é que o Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) seja admitido e, assim, analisado pelos ministros. Segundo o advogado, a questão apresentada no processo é de repercussão geral. “São duas normas da Constituição Federal em choque”, resumiu.
O Supremo já analisou recursos pedindo a retirada de vídeos com conteúdo ofensivos a religiões antes – e em um caso específico, envolvendo reclamações da religião islâmica. Em maio de 2017, o ARE 953.822, do estado de São Paulo, foi desprovido pela 1ª Turma do STF. O agravo, apresentado pela União Nacional das Entidades Islâmicas contra decisão do TJSP, pedia a retirada do ar de um mini-documentário norte-americano com ofensas e críticas diretas ao Islã, lançado em 2012.
O voto do relator do caso, ministro Marco Aurélio, foi desfavorável à entidade. Para o magistrado, ao alegar que a liberdade de expressão não é irrestrita, a recorrente estaria tentando rediscutir uma questão pacífica no tribunal.
Processos citados na matéria:
No STJ:
REsp 1765579
Sociedade Beneficente Muçulmana x Google Brasil Internet Ltda.
No STF:
ARE 953822
União Nacional das Entidades Islâmicas x Google Brasil Internet Ltda.
Fonte: JOTA. Acesso em: 07/02/2019.