Carollyne Bueno Molina
Mestranda em Direito pela Unimar. Pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Advogada. carollynemolinaadv@gmail.com
Elias Marques de Medeiros Neto
Pós-Doutorado em Direito Processual Civil nas Universidades de Lisboa, Coimbra/IGC e Salamanca. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Pesquisador Visitante, em Direito Processual Civil, no Instituto Max Planck. Professor Doutor de Direito Processual Civil nos programas de Doutorado e Mestrado da Unimar, nas Pós-Graduações do Ceu-Law e na graduação da Facamp. Advogado. eliasmarquesneto@hotmail.com
Área do Direito: Civil; Processual
Resumo: No cenário jurídico brasileiro, as garantias locatícias e a proteção do bem de família apresentam desafios complexos. A Lei de Locações prevê diferentes modalidades de garantia, enquanto a Lei 8.009/1990 assegura a impenhorabilidade do bem de família, exceto em casos específicos, como a fiança locatícia. Esse contexto gera debates, especialmente sobre a inclusão da caução locatícia (a caução hipotecária no contexto dos contratos de locação). O presente estudo investiga a conciliação entre a segurança dos locadores e a proteção à moradia, considerando falsificações nas declarações de bens do caucionante. A pesquisa emprega a análise econômica do direito para avaliar as implicações dessas normas na eficiência do mercado imobiliário e na proteção dos direitos fundamentais. Conclui-se que a falsa declaração de bens prejudica a efetividade judicial e a boa-fé esperada nas relações contratuais, propondo-se a inclusão da caução como exceção na Lei 8.009/1990.
Palavras-chave: Caução locatícia – Impenhorabilidade – Bem de família – Efetividade processual – Segurança jurídica
Abstract: In the Brazilian legal framework, lease guarantees and the protection of Family property present complex challenges. The Lease Law provides for different types of guarantees, while Law 8.009/1990 ensures the unseizability of family property, except in specific cases, such as lease surety. This context generates debates, especially regarding the inclusion of lease guarantees (mortgage collateral in the context of lease agreements). This study investigates the reconciliation between landlords’ security and the protection of housing, considering falsifications in the guarantor’s asset declarations. The research employs the economic analysis of law to assess the implications of these regulations on the efficiency of the real estate market and the protection of fundamental rights. It concludes that false asset declarations undermine judicial effectiveness and the good Faith expected in contractual relationships, proposing the inclusion of lease guarantees as an exception under Law No. 8.009/1990.
Keywords: Rental deposit – Unseizability – Family asset – Procedural effectiveness – Legal security
Para citar este artigo: Molina, Carollyne Bueno; Medeiros Neto, Elias Marques de. Revisão das exceções à impenhorabilidade do bem de família: proposta de inclusão, como exceção, da caução locatícia. Revista de Processo. vol. 360. ano 50. p. 185-204. São Paulo: Ed. RT, fevereiro 2025. Disponível em: [URL]. Acesso em: DD.MM.AAAA.
Sumário:
1. Introdução – 2. Contratos de locação e suas espécies de garantias – 3. Bem de família e a
impenhorabilidade – 4. Análise Econômica do Direito ante as garantias locatícias – 5. A questão da falsidade na declaração de bens e seus impactos na efetividade do processo – 6. Necessidade de inclusão da caução locatícia no rol de exceções de impenhorabilidade previstas na Lei 8. 009/1990 – 7. Conclusões – 8. Referências
Introdução
No cenário jurídico brasileiro, a questão das garantias locatícias e a proteção do bem de família são temas de significativa importância e complexidade. Enquanto a Lei de Locações estabelece diversas modalidades para garantir o cumprimento das obrigações contratuais, a Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21) assegura a impenhorabilidade do bem de família, protegendo a moradia da família contra execuções judiciais, exceto em casos expressamente previstos. Entre esses casos, está a exceção para a fiança locatícia (inc. VII) e hipoteca (inc. V), mas não especificamente para a caução, o que tem gerado debates intensos no meio jurídico.
É importante destacar que a caução pode assumir diversas modalidades, sendo prestada em bens móveis ou imóveis. O § 1º do art. 38 da Lei 8.245, de 1991 (LGL\1991\30), estabelece que “a caução em bens móveis deverá ser registrada em cartório de títulos e documentos; a em bens imóveis deverá ser averbada à margem da respectiva matrícula”.
Assim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem decidido que a impenhorabilidade do bem de família se mantém, mesmo quando o imóvel é oferecido em garantia, pois a exceção à regra da impenhorabilidade só se aplica a hipotecas constituídas para garantir dívidas próprias (em benefício da entidade familiar), conforme o inc. V do art. 3º da Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21). A ministra Nancy Andrighi, em decisão de relatoria, esclareceu que a lei admite a penhora do bem de família apenas em situações de fiança concedida no contrato de locação, conforme o inc. VII, não se estendendo à caução hipotecária prestada por terceiro.
Em síntese, se um terceiro oferece um imóvel em caução hipotecária e o locatário se torna inadimplente, a legislação sobre impenhorabilidade de bens de família não admite exceção análoga à da fiança. A jurisprudência tem reiterado que a hipoteca só pode incidir sobre bens de família do próprio devedor, afastando essa garantia em casos de dívidas de terceiros. Isso cria uma aparente inconsistência, pois, enquanto o fiador pode responder com o bem de família, o mesmo não ocorre com quem oferece o imóvel como garantia real – caução hipotecária.
Além das questões jurídicas envolvendo a natureza das garantias locatícias, há um agravante quando o locador é induzido por falsas declarações do locatário e do caucionante. O caucionante, ao firmar o contrato, declara que o imóvel oferecido como garantia, de sua propriedade, não é bem de família, sob a justificativa de possuir outros bens. No entanto, no momento da execução da garantia, alega a impenhorabilidade do imóvel, buscando beneficiar-se da proteção conferida por esse instituto.
Este estudo se propõe a analisar essas complexidades, examinando as bases legais e jurisprudenciais que norteiam a interpretação das garantias locatícias à luz da boa-fé contratual, bem como os limites da impenhorabilidade do bem de família, levando em consideração os impactos na efetividade do processo judicial.
A análise econômica do direito será utilizada como ferramenta para compreender as implicações dessas normativas na eficiência do mercado e na proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos nas relações locatícias.
Ao confrontar essas questões, busca-se não apenas contribuir para o debate acadêmico e jurídico, mas também propor reflexões que possam subsidiar decisões legislativas e judiciais mais equilibradas e alinhadas com os princípios constitucionais da livre-iniciativa, boa-fé e segurança jurídica.
O trabalho está estruturado da seguinte forma: inicialmente, será abordado o tema dos contratos de locação e as diferentes espécies de garantias associadas a esses contratos. Em seguida, será discutido o conceito de bem de família e a impenhorabilidade que lhe é conferida. Posteriormente, será empregada a Análise Econômica do Direito para investigar as garantias locatícias. Em sequência, investigaremos como o comportamento contraditório e as declarações falsas nos contratos de locação afetam a efetividade do processo. Por fim, será proposta a inclusão da caução locatícia no rol de exceções da Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21), permitindo sua penhora em casos específicos.
Contratos de locação e suas espécies de garantias
Inicialmente convém trazer o conceito do contrato de locação nas palavras de Orlando Gomes: “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante contraprestação em dinheiro, a conceder à outra, temporariamente, o uso e gozo de coisa não fungível”1. O doutrinador observa que o contrato de locação tem sido influenciado, na sua disciplina, pela política de proteção legislativa aos fracos. Em razão da angustiosa crise de habitação, medidas legais têm sido ditadas para amparar os locatários, especialmente os urbanos. Embora de caráter emergente, os preceitos legais tutelares, de natureza imperativa, alteram o conteúdo tradicional do contrato, e lhe modificam o perfil clássico.
Atualmente, todas as locações de prédios urbanos, sejam para fins residenciais ou empresariais, regem-se pela Lei 8.245/1991 (LGL\1991\30) (Lei do Inquilinato), expressamente mantida em vigor pelo Código Civil de 2002. Esse diploma legal revogou a lei do inquilinato anterior, que apenas disciplinava a locação predial urbana de fins residenciais, bem como o Decreto 24.150/1934 (LGL\1934\6) (conhecido com Lei de Luvas), que regia a locação predial para fins comerciais ou industriais, consolidando, pois, o tratamento da locação predial urbana.
A Lei de Locações permite que as partes estabeleçam as seguintes garantias contratuais: a) caução, que pode ser em bem móvel (registrada no Cartório de Títulos e Documentos) ou imóvel (registrada no Cartório de Registro de Imóveis), e dinheiro, que deve ser depositada em caderneta de poupança e não pode exceder o valor de três meses de aluguel; b) fiança; c) seguro de fiança locatícia, que é diferente do seguro contra incêndio, pois este não é uma modalidade de garantia; d) cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento².
É válido ressaltar que não é permitido estabelecer mais de uma forma de garantia em um contrato de locação, sob o risco de invalidar o contrato, fato que também implica em entrave para o credor receber seu crédito.
Pois bem, a caução, enquanto garantia real, tem a finalidade de assegurar o adimplemento das obrigações contratuais até a restituição do imóvel ao locador, sendo passível de constituição por meio de bem móvel, imóvel ou pecúnia. Muito embora a caução não esteja prevista como um dos direitos reais no Código Civil (LGL\2002\400), entende-se que, estando averbada na matrícula do imóvel ela tem efeito de garantia real, tal qual uma hipoteca3. O devido registro da garantia deverá ser realizado conforme a natureza do bem oferecido: no Cartório de Títulos e Documentos, caso se trate de bem móvel, ou no Registro de Imóveis, se for bem imóvel, em conformidade com o que estabelecem os arts. 37 e 38, § 1º, da Lei 8.245/1991 (LGL\1991\30).4
A caução é um termo genérico que complementa uma relação jurídica principal. Em um sentido mais amplo, inclui garantias reais como hipoteca, penhor e anticrese, conforme estabelecido pelo Código Civil (LGL\2002\400).
A doutrina defende que quando um imóvel é oferecido em garantia para ser objeto de caução, a roupagem jurídica que a caução se constituirá é a hipoteca.5 E, nesse ponto, quanto à natureza da garantia, encontra-se a raiz da problemática, pois, sendo a caução interpretada como hipoteca, à primeira vista se pensaria que seria possível a penhora do bem de terceiro caucionante, por estar a hipótese prevista no rol taxativo de possibilidade de penhora do bem de família. Entretanto, a hipoteca só se efetivará quando houver dívida constituída em favor da entidade familiar6. Nesse sentido, o caucionante (terceiro garantidor) ofereceria o bem, mas, em caso de inadimplência, não haveria a excussão da garantia se este fosse bem de família, frustrando a legítima expectativa do locador/credor.
A fiança, por sua vez, é uma garantia pessoal fornecida por um terceiro ao locador, para garantir as obrigações do locatário. Segundo Maria Helena Diniz, a fiança concede ao credor um direito pessoal contra um devedor subsidiário, ou seja, a pessoa que presta a caução7. A fiança é a modalidade de garantia locatícia mais comum, pois não exige que o locatário disponha de dinheiro antecipadamente, ao contrário da caução ou do seguro-fiança (caso o primeiro não seja em imóvel). Mesmo com as especificidades trazidas pela Lei de Locações, ainda existem normas gerais do direito privado que regulam esse instituto amplamente utilizado em diversos tipos de contratos.
Quando um fiador assina a fiança, ele se compromete a cumprir as obrigações do locatário, incluindo o pagamento do aluguel e dos encargos locativos. A fiança é um contrato acessório e unilateral, exigindo forma escrita (art. 819, Código Civil (LGL\2002\400)), não permitindo interpretação extensiva. O fiador se obriga perante o locador, mas este não assume obrigações em relação ao fiador. Para o locador, é um contrato oneroso, mas, geralmente, é gratuito para o locatário8.
Qualquer pessoa com livre disposição de seus bens pode ser fiador. Contudo, se o fiador for casado, é necessário o consentimento do cônjuge, exceto no regime de separação absoluta, sob pena de nulidade relativa da fiança prestada (art. 1.647, III e 1.649, CC (LGL\2002\400)).9
Tecidas essas considerações iniciais sobre garantias em contratos de locação, passaremos a expor sobre o bem de família e a impenhorabilidade que recai sobre ele.
Bem de família e a impenhorabilidade
No direito brasileiro, o conceito de bem de família está presente desde o Código Civil de 1916. Nesse estatuto, diferentemente da noção originária, ele foi previsto como uma alternativa disponível aos chefes de família, necessitando de sua iniciativa individual para constituição. Devido a essa exigência, o instituto foi escassamente utilizado. O Código Civil (LGL\2002\400) revogado previa o bem de família na Parte Geral, complementando o regime dos bens. Especificamente, no art. 70, autorizava os chefes de família a destinarem um prédio para domicílio, com a cláusula de isenção de execução por dívidas, exceto aquelas provenientes de impostos relativos ao próprio imóvel10.
Hodiernamente, essa normativa está revogada, e a disciplina do bem de família encontra-se distribuída entre a Lei 8.009, de 29 de março de 1990 (LGL\1990\21), e o Código Civil de 2002 (arts.1.711 a 1.722). Embora o Código Civil de 1916 tenha tratado do assunto, foi com a Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21) que o bem de família alcançou um novo patamar no ordenamento jurídico nacional.
Esse avanço legislativo ocorreu em um contexto de crise econômica na década de 1990, quando os níveis de inflação estavam alarmantes e ameaçavam a estabilidade social. O legislador reconheceu a necessidade de preservar uma estrutura mínima de vida para as pessoas, garantindo a residência das famílias.
Dessa forma, a Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21) instituiu uma nova classe de bem de família, dispensando qualquer providência dos interessados para sua constituição. Se o bem atendesse às características exigidas pela lei, a proteção decorreria automaticamente, similar ao previsto na legislação norte-americana. Essa mudança legislativa refletiu a intenção de assegurar um direito fundamental à moradia, sem a necessidade de ações individuais para garantir essa proteção.
Importante deixar claro que o Código Civil (LGL\2002\400) aborda o bem de família voluntário (art. 1.712 do CC (LGL\2002\400)#2002), opcionalmente instituído por iniciativa do proprietário mediante atendimento de determinadas formalidades – o que geralmente ocorre quando o indivíduo tem mais de um bem e quer selecionar um como o de família.11 Em contraste, a Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21) trata de outra modalidade de bem de família, conhecida como legal ou involuntária. No caso do bem de família legal, a proteção do patrimônio é estabelecida diretamente pela lei, sem necessidade de ação por parte dos envolvidos.
Apesar de algumas diferenças delicadas feitas pela doutrina, em ambos os casos, o bem de família passou a ser um instrumento essencial para a preservação da dignidade e da estabilidade social, garantindo que, independentemente das dívidas contraídas, as famílias pudessem manter sua residência. A evolução legislativa nesse campo demonstra a preocupação do legislador em adaptar o ordenamento jurídico às necessidades sociais e econômicas, assegurando a efetividade dos direitos fundamentais12.
Ocorre que, tão relevante quanto assegurar a proteção aos necessitados é garantir que não haja abuso de direito por indivíduos que utilizam o instituto para lesar credores e frustrar garantias licitamente ofertadas – o que será o alvo deste estudo – entre outras estratégias que possuem como escopo retardar a efetividade do processo. Isto porque não é razoável que se privilegie em excesso o devedor, esquecendo-se da dignidade do credor13.
Uma outra problemática e que se trata de um vácuo legislativo, o qual gera muito oportunismo para àqueles que buscam esquivar do pagamento das suas dívidas, atrapalhando sobremaneira a efetividade do processo, é a ausência de estabelecimento de um valor módico ao bem de família.
São essas as lições tecidas pelo professor doutor Elias Marques de Medeiros Neto e por André Medeiros Toledo, os quais lecionam que ordenamento jurídico brasileiro não fornece adequadamente uma resposta satisfativa aos interesses do credor.
Nesse diapasão, naquele trabalho foi proposto que a cláusula da impenhorabilidade do bem de família precisa ter limites, uma vez que haverá situações exorbitantes que podem beirar o abuso de direito. É o caso, por exemplo, de imóveis luxuosos e de alto valor que, mesmo fornecendo um patrimônio máximo ao devedor, estão garantidos pela proteção da impenhorabilidade.
Análise Econômica do Direito ante as garantias locatícias
Conforme salientou o Ministro Luís Felipe Salomão em seu voto no Recurso Especial 1.822.033 – PR (2019/0178566-3), ao analisar pesquisas como a da Associação Brasileira de Shopping Centers – Abrasce no RE 1.307.334/SP, verificou-se que a caução em dinheiro é limitada a apenas três meses de aluguel (art. 37, § 2º, da Lei de Locações) e nem sempre é aceita pelos locadores.
Além disso, o seguro de fiança locatícia apresenta custos elevados para o locatário e sua obtenção depende da aprovação da seguradora, que possui critérios exclusivos. A cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento é pouco utilizada. A fiança, por outro lado, reduz os custos de transação e amplia a oferta de imóveis para locação, aumentando a concorrência e diminuindo o valor do aluguel.
Isso reduz os custos fixos dos locatários, que podem repassar essas economias aos preços dos bens e serviços, beneficiando consumidores e a sociedade.
A pesquisa também apontou que, nos shopping centers, a maioria dos contratos de locação é garantida por fiança, com mais de 90% dos contratos em alguns empreendimentos sendo garantidos dessa forma. A substituição da fiança por outros tipos de garantia poderia causar mudanças significativas no mercado, especialmente para lojistas menores, que enfrentariam custos e complexidades adicionais na locação de imóveis comerciais, potencialmente inviabilizando seus negócios.
Portanto, o equilíbrio atingido no mercado imobiliário devido às garantias fidejussórias e reais permitem que locadores e locatários maximizem suas escolhas, minimizando custos e maximizando benefícios.
Assim, em uma Análise Econômica do Direito, afastar às garantias fidejussórias e reais da locação, especialmente a possibilidade de penhora do imóvel do fiador ou caucionante, provavelmente diminuiria a eficiência do mercado imobiliário para atividades econômicas, afetando a oferta e demanda. Isso aumentaria o custo dos contratos, reduzindo o número de locatários potenciais, diminuindo a riqueza e o bem-estar ao aumentar os custos sociais, reduzindo o empreendedorismo, a oferta de empregos e, consequentemente, a renda da população.
No Brasil, a Análise Econômica do Direito é uma disciplina recente e ainda pouco conhecida. Tokars observa que “(…) e no Brasil, o que se fez? Muito pouco, o que não surpreende neste país em que o desenvolvimento cultural não é exatamente uma prioridade; em que um pragmatismo nem sempre virtuoso coloca em segundo plano a atividade econômica.”14
Nessa esteira, a partir desse raciocínio lógico, é essencial que existam garantias contratuais que tragam segurança no cumprimento das obrigações de pagamento15. Sem essas garantias, os valores de locação se tornariam menos atrativos, pois o aumento da inadimplência levaria a uma análise de risco mais rigorosa, resultando em valores de locação mais elevados. Isso ocorre porque os locadores precisariam compensar os inadimplentes e as garantias não executadas, aumentando os custos para os locatários adimplentes.
A questão da falsidade na declaração de bens e seus impactos na efetividade do processo
Nesta parte da pesquisa, optamos por enfrentar um problema prático que vem sendo discutido nos Tribunais brasileiros, qual seja: a declaração de existência de outros bens feita por caucionante no momento da oferta da garantia é invalida se for falsa? Pode o caucionante oferecer um bem alegando que possui outros e depois beneficiar-se da proteção do bem de família?
Pois bem, o princípio do venire contra factum proprium, que veda o comportamento contraditório e inesperado, visa impedir que uma parte adote posturas que surpreendam a outra de maneira injusta.
Em contratos principalmente que não são de adesão, não é aceitável que, antes da locação, o caucionante alegue falsamente a existência de outros bens imóveis e, após o inadimplemento, informe ao locador que estava mentindo, causando-lhe surpresa e frustrando a excussão da garantia ofertada. Tal comportamento contraditório, revelado apenas após o descumprimento das obrigações contratuais, não pode ser utilizado em benefício próprio, sob pena de violação do referido princípio.
Nos valiosos ensinamentos da Judith Martins em a boa-fé e o exercício jurídico16: “O telos da proibição inserta no venire contra factum proprium é o de impedir atos de deslealdade capazes de pôr em perigo a confiabilidade ínsita aos atos de autonomia privada, considerando-se que, numa comunidade de pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente um ‘responder’ pelas pretensões de verdade, de retidão ou de autenticidade inerentes à mensagem que nossas condutas – promessas, informações, conselhos, recomendações, atestados, omissões, certificações, declarações de ciência – transmitem. Por isso, verifica-se um escalonamento na incidência do princípio da boa-fé como norma de coerência contratual, consoante o grau de vinculação entre os sujeitos (sendo certo não ter a vinculação em todos os casos a mesma eficácia), segundo o setor do tráfego social considerado e conforme a legitimidade da expectativa suscitada no alter.”
Deveras, existindo outros imóveis conforme afirmou o caucionante, não se pode valer da garantia de bem de família. Assim, não há renúncia antecipada de um direito quando se nega a origem por agir de má-fé e no momento da contratação. Dessa maneira, a declaração falsa gera uma assimetria informacional ao locador, pois este não tinha conhecimento da falsidade declarada no contrato e foi induzido ao erro. Resumindo, o locatário exigiria outra forma de garantia caso soubesse que o caucionante possuía apenas um único bem. Sobre a assimetria informacional, Boschi assevera o seguinte: “Vê-se, nesse contexto, que a assimetria informacional implica falhas de racionalidade nos contratos, o que inexoravelmente compromete a pretensão das partes de que o contrato seja instrumento para obtenção da máxima eficiência econômica.”17
Com efeito, a assimetria informacional nos contratos de locação, à semelhança do ocorrido, é uma falha que intensifica o desequilíbrio entre o locador e o locatário. É evidente que o locador não tem o aparato informacional adequado para avaliar se o locatário, no caso o caucionante, está realizando uma declaração falsa de existência de bens, sendo inviável requerer pesquisas imobiliárias em todo o país e até no exterior para confirmar se a parte está mentindo – melhor dizendo, agindo com evidente má-fé e pretensão de lesar outrem. Exigir isso seria ir na contramão da presunção de veracidade prevista no art. 219 do Código Civil (LGL\2002\400), o qual prevê que “as declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários”.
Nota-se que, diferentemente de casos de execução comum e pedidos de penhoras tradicionais, onde não há um contrato prévio com uma declaração que se presume verdadeira e cujo ônus de desconstituir a ideia de bem de família é do exequente, em casos nos quais há um contrato, não sendo ele de adesão, essa presunção de impenhorabilidade é afastada anteriormente, sob pena de tolher a segurança dos contratos e da expectativa daqueles que, de boa-fé, cumprem suas obrigações na relação. No caso, a legítima expectativa é a apropriação da caução, nas palavras de Orlando Gomes18: “Se inadimplente é o locatário, por não ter cumprido a obrigação de pagar o aluguel, pode o locador optar por uma destas soluções: requerer o despejo para expulsá-lo da casa, executá-lo ou realizar as garantias, apropriando-se da caução ou, havendo fiança [ou seguro de fiança locatícia], cobrando do fiador [ou segurador] o aluguel.”
De mais a mais, o STJ já se posicionou (Jurisprudência em Teses 74, Consumidor III, afirmativa 13) no sentido de que as normas consumeristas não se aplicam aos contratos de locação de imóvel, uma vez que estes são regidos por legislação específica (Lei 8.245/1991 (LGL\1991\30)) e as partes não se amoldam aos conceitos de consumidor e de fornecedor.
Nesse sentido, levanta-se a hipótese, quem poderia melhor afirmar se possui mais de um bem imóvel além do próprio dono (proprietário) deles? Não nos parece crível impor ao locador que realize uma due diligence sobre os bens imóveis do caucionante se ele mesmo declarou que possui outros imóveis, pois seria análogo ao atribuir-lhe uma prova diabólica, ainda mais face à desintegração dos cartórios imobiliários nacionais. De igual maneira, não pode o caucionante declarar que possui outros bens no momento de firmar o contrato e posteriormente dizer que estava equivocado e ser beneficiado por isso. É essa a interpretação que se extrai dos arts. 422, 219 e 187 do Código Civil (LGL\2002\400)19.
O comportamento ardiloso em contratos compromete seriamente a efetividade do processo. Da cláusula geral do “devido processo legal” podem ser extraídos todos os princípios que regem o direito processual. É dela, por exemplo, que se extrai o princípio da efetividade: os direitos devem ser, além de reconhecidos, efetivados. Como leciona o professor Fredie Didier Jr., o processo devido é o processo efetivo20.
Em resumo, o instrumento processual precisa ser eficaz, e isso somente ocorre se ele for adequado ao fim pretendido. A utilidade do ordenamento jurídico material está intimamente relacionada com a eficácia do processo, que constitui o meio para garantir a atuação do Direito nas hipóteses de ausência de cooperação espontânea das partes. Isso porque não se admite a utilização da força pelos interessados. O Estado deve, portanto, apresentar um meio idôneo para assegurar a efetividade da tutela jurisdicional adequada às necessidades verificadas no plano substancial.21
A declaração falsa de existência de outros bens pelo caucionante, ao oferecer garantia, viola não apenas princípios contratuais, mas também processuais. Isso se dá porque, quando esse contrato é judicializado, o processo de execução baseado nesse título não alcançará o resultado esperado, que seria a excussão da garantia prestada e sua conversão em penhora. Essa falha compromete a efetividade do processo judicial.
Ao mentir sobre a existência de outros bens, o caucionante não apenas induz em erro o locador, mas também frustra a execução eficaz do contrato. O princípio da efetividade exige que os direitos reconhecidos sejam realmente realizados. Se a execução do contrato não pode alcançar a penhora dos bens garantidos, o processo perde sua eficácia, tornando-se incapaz de garantir a tutela jurisdicional adequada.
Essa situação se agrava quando consideramos que a efetividade processual depende de instrumentos processuais adequados e eficazes. Quando o contrato é baseado em declarações falsas, a presunção de veracidade, conforme o art. 219 do Código Civil (LGL\2002\400), é quebrada, e o locador se vê desamparado, sem os meios necessários para executar a garantia de maneira eficaz.
A legislação processual, ao extrair do devido processo legal o princípio da efetividade, busca assegurar que os processos judiciais não sejam meras formalidades, mas sim instrumentos eficazes para a realização dos direitos materiais das partes envolvidas. A falsidade do caucionante subverte essa lógica, pois cria um obstáculo para a execução da garantia, comprometendo a utilidade do processo judicial.
Portanto, a falsa declaração do caucionante atinge diretamente a efetividade do processo judicial, uma vez que a execução da garantia não se concretiza conforme esperado. Isso gera uma frustração para o locador, que confiou nas informações fornecidas e esperava poder contar com a garantia para assegurar seus direitos. A boa-fé objetiva e o princípio da efetividade processual exigem que o caucionante responda por suas declarações, garantindo que a execução do contrato seja viável e eficaz.
Em conclusão, a mentira na cláusula de existência de outros bens, além de ferir princípios
contratuais como o da boa-fé e o pacta sunt servanda, compromete gravemente a efetividade do processo judicial. É imperativo que o ordenamento jurídico sancione tais comportamentos para preservar a confiança nas relações contratuais e assegurar que os processos judiciais sejam instrumentos eficazes para a realização dos direitos das partes envolvidas.
Necessidade de inclusão da caução locatícia no rol de exceções de impenhorabilidade previstas na Lei 8. 009/1990
O instituto da impenhorabilidade nasceu como uma proteção que visa amparar pessoas de boa-fé, bem como resguardar a dignidade da pessoa humana e não àquelas que intencionalmente agem com intuito de lesar outrem. Acontece que a impenhorabilidade – praticamente absoluta – do bem de família vem se transformando num axioma insuperável, desencadeando (não raras vezes) inúmeros processos de execução infrutíferos para o credor.22
Acerca do tema, dos vários julgados do STJ, destaca-se o Recurso Especial 1.873.203 – SP (2020/0106938-8). Apesar disso, percebemos que o STJ não enfrentou o assunto em sua profundidade, limitando-se a apreciar a pura e simples literalidade da lei. Vejamos:
“Como se sabe, as hipóteses de exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família, previstas na Lei 8.009/90 (LGL\1990\21), são taxativas, não comportando interpretação extensiva. 5. Dentre elas, como se infere, não consta a hipótese da caução imobiliária oferecida em contrato de locação, razão pela qual inviável que se admita a penhora ao bem de família do recorrente.6 De fato, considerando que a possibilidade de expropriação do imóvel residencial é exceção à garantia da impenhorabilidade, a interpretação às ressalvas legais deve ser restritiva, sobretudo na hipótese sob exame, em que o legislador optou, expressamente, pela espécie (fiança), e não pelo gênero (caução), não deixando, por conseguinte, margem a dúvidas (REsp 866.027/SP, 5ª Turma, DJ 29/10/2007).”
No caso em questão, um aposentado atuou como caucionante em um contrato firmado entre duas empresas locadoras de imóveis e a empresa locatária, oferecendo como garantia um imóvel de sua propriedade.
Após serem constatados débitos relativos ao imóvel alugado, foi ajuizada uma ação de execução contra o aposentado. Ele argumentou que a garantia prestada no contrato de locação era uma caução imobiliária, diferente da fiança locatícia, que é uma das exceções à regra geral da impenhorabilidade do bem de família. Além disso, alegou que o imóvel oferecido em garantia era o bem de família onde residia com seus familiares.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu que a caução de um bem imóvel em um contrato de locação (art. 37, inc. I, da Lei 8.245/1991 (LGL\1991\30)) configura hipoteca, o que é uma exceção à impenhorabilidade, conforme o art. 3º, inc. V, da Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21).
Em seu voto, a ministra Nancy Andrighi, destacou que a Lei 8.245/1991 (LGL\1991\30), ao incluir o inc. VII no art. 3º da Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21), determinou que a penhora do bem de família é permitida em caso de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, acrescentando essa situação às exceções já previstas.
Ela ressaltou, entretanto, que entre as previsões legais não há menção à caução imobiliária, o que inviabiliza a penhora do bem no caso em julgamento. “As exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família, previstas na Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21), são taxativas e não permitem interpretação extensiva”, declarou a relatora23.
A ministra, citando um precedente da Quinta Turma, enfatizou ainda que, por ser a expropriação de um imóvel residencial uma exceção à garantia da impenhorabilidade, a interpretação dessas ressalvas legais deve ser restritiva, especialmente porque o legislador escolheu explicitamente a fiança, e não a caução.
O recente julgado supracitado parece modificar o posicionamento da Corte, haja vista que em 2006 o STJ definiu que é possível penhorar o bem de família ofertado, sendo extraído da ementa que a proteção constante na Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21) é passível de renúncia, pois está na parte disponível dos direitos pessoais:
“Civil. Bem de família. Lei 8.009, DE 1990. A impenhorabilidade resultante do art. 1º da Lei 8.009, de 1990 (LGL\1990\21), pode ser objeto de renúncia válida em situações excepcionais; prevalência do princípio da boa fé objetiva. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 554.622/ RS, rel. Ministro Ari Pargendler, 3ª T., j. 17.11.2005, DJ 01.02.2006. p. 527).
Em resumo, diferentemente do que abordam doutrinadores, como o professor Flávio Tartuce24, que se posiciona desfavoravelmente quanto à renúncia à impenhorabilidade do bem de família, há situações específicas que merecem uma análise distinta. Em casos de declaração falsa, onde o caucionante afirma ter outros imóveis, surge uma assimetria gerada pela torpeza do contratante.
Nessas situações, não é crível impor ao contratado o rompimento da expectativa inicial da obrigação: ver a excussão da garantia em caso de inadimplemento.
Por isso, não se trata de renúncia antecipada de direitos, mas de uma situação em que o próprio caucionante, ao fazer a afirmação de que possuía outros bens, compromete a proteção conferida pela Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21). A partir do momento em que o caucionante declara possuir outros bens, ele cria uma expectativa legítima de segurança para o contratado, que aceita a garantia confiando na veracidade das informações fornecidas. Assim, exigir do contratado que suporte o prejuízo decorrente de uma declaração falsa seria injusto, rompendo a expectativa inicial de que a garantia seria executada em caso de inadimplemento.
Dessa forma, a proteção do bem de família não pode servir de escudo para práticas enganosas que lesam o contratante. A jurisprudência deve, portanto, considerar as nuances de cada caso, reconhecendo a validade da execução da garantia quando o caucionante age de maneira fraudulenta.
Nessa linha de pensamento, em situações de declaração falsa sobre a existência de outros bens, o ponto central da questão não é o mero exercício da autonomia privada na renúncia à impenhorabilidade do bem de família, mas sim a observância da boa-fé e da presunção de veracidade exigidas pela legislação. Essas premissas são fundamentais, especialmente no contexto de negócios jurídicos que se caracterizam por sua paridade e simetria.
Ao negligenciar o ponto central da questão – a exigência de boa-fé e veracidade – corre-se o risco de adotar soluções que, embora superficialmente mais “sociais” e factíveis, geram consequências adversas significativas no mercado imobiliário. Tal abordagem pode resultar em externalidades negativas que afetam todo o setor, aumentando os custos dos contratos de locação. Isso acontece porque os locadores, ao enfrentar inadimplência decorrente de comportamentos ardilosos, são compelidos a repassar esses custos adicionais aos locatários que cumpririam suas obrigações contratuais.
Além disso, a desconsideração da boa-fé pode minar a confiança nas relações contratuais, essencial para a segurança jurídica e o bom funcionamento do mercado. A elevação dos custos contratuais, inevitável diante da necessidade de mitigar riscos de inadimplência, pode levar a uma retração na oferta de imóveis para locação e a um encarecimento geral das condições de locação, prejudicando especialmente os locatários de boa-fé.
O Direito Civil Constitucional deve garantir a proteção à moradia não apenas de um único indivíduo, mas sim de toda a coletividade que necessita de um lar em condições adequadas e com valores acessíveis. Assim, privilegiar a boa-fé nos contratos, de modo a evitar enriquecimento ilícito decorrente de declarações falsas, não é apenas uma questão de observância ao princípio da boa-fé como norma de coerência contratual, conforme exposto nas lições de Judith Martins, trata-se também de proteger todos aqueles que dependem da locação para exercer seu direito à moradia.
A insistência na boa-fé contratual promove maior efetividade equidade nas relações locatícias, evitando que indivíduos desonestos se beneficiem em detrimento dos demais, uma vez que a falsa declaração de bens, quando não sancionada, não só prejudica o locador, mas também afeta negativamente o conjunto dos locatários, elevando os custos e reduzindo a oferta de imóveis.
Dessa maneira, considerando a problemática apresentada, bem como o pontuado pela ministra
Nancy Andrighi, que as exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família, previstas na Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21), são taxativas e não permitem interpretação extensiva, propõe-se a partir deste estudo a alteração da legislação para incluir em sua redação a caução locatícia no rol de exceções, especialmente pelo fato que ela pouco difere da fiança. Tal inserção não abrangeria o instituto da hipoteca como um todo, mas especificamente em relação à caução (hipotecária) em relações locatícias.
Nota-se que antes desse posicionamento do STJ os demais Tribunais de Justiça vinham proferindo decisões, inclusive, permitindo a penhora por uma analogia entre os dois institutos, uma vez que, em termos práticos, o caucionante e o fiador são garantes da obrigação, diferenciando que a obrigação do primeiro é limitada tão somente ao imóvel, coisa ou dinheiro que foi ofertado (sendo uma garantia real), enquanto o segundo é a garantia pessoal prestada por uma terceira pessoa perante o locador, para garantir as obrigações assumidas pelo devedor. Conforme preceitua Maria Helena Diniz25 “Consiste na outorga ao credor do direito pessoal contra devedor subsidiário, isto é, a pessoa que presta caução.”
Assim, se a efetividade e a aplicabilidade do que é justo não podem ser alcançadas devido a uma limitação legal, é necessário considerar uma revisão legislativa. A legislação atual inclui explicitamente apenas a fiança entre as exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família, conforme disposto no art. 3º, inc. VII, da Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21). Essas exceções são taxativas e não permitem interpretação extensiva, o que impede a inclusão da caução locatícia dentro do mesmo escopo.
Dada essa limitação, é essencial que o legislador altere a legislação para refletir a realidade das relações contratuais e garantir a justiça na execução das garantias locatícias. A interpretação atual do direito como letra posta, sem considerar o que seria mais justo e lógico a partir de uma interpretação dedutiva, desconsidera as semelhanças e a finalidade comum entre os institutos de caução e fiança. Ambos são utilizados como garantias de locação e possuem a mesma finalidade: assegurar o cumprimento das obrigações contratuais.
Com efeito, é imperativo que a legislação evolua para incluir a caução locatícia (a caução hipotecária no contexto dos contratos de locação) entre as exceções à impenhorabilidade do bem de família. Tal mudança legislativa harmonizaria a lei com a prática contratual e promoveria a justiça e a equidade nas relações locatícias. Ignorar essa necessidade perpetua uma situação em que a caução se torna uma garantia ficta, comprometendo a confiança e a segurança jurídica no mercado imobiliário.
Além disso, a revisão legislativa permitiria uma aplicação mais coerente e justa dos princípios contratuais, alinhando-se com o princípio da boa-fé e a necessidade de transparência nas relações jurídicas. O reconhecimento da caução como uma exceção à impenhorabilidade do bem de família reforçaria a proteção dos direitos dos locadores, garantindo que possam efetivamente executar as garantias oferecidas, assim reduzindo os riscos e custos associados à inadimplência.
Convém trazer à baila que a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a sistemática dos recursos especiais repetitivos (Tema 1.091), estabeleceu a tese de que é válida a penhora do bem de família de fiador dado em garantia em contrato de locação de imóvel – seja residencial ou comercial –, conforme disposto no art. 3º, inc. VII, da Lei 8.009/1990 (LGL\1990\21). O julgamento em questão teve como base o entendimento firmado pelo STJ no Tema 1.127, nas precisas palavras do relator Luís Felipe Salomão:
“O fiador, no pleno exercício de seu direito de propriedade de usar, gozar e dispor da coisa (Código Civil (LGL\2002\400), artigo 1.228), pode afiançar, por escrito (CC (LGL\2002\400), artigo 819), o contrato de locação (residencial ou comercial), abrindo mão da impenhorabilidade do seu bem de família, por sua livre e espontânea vontade, no âmbito de sua autonomia privada, de sua autodeterminação.”
Entendemos que o mesmo raciocínio é suficiente para justificar a necessidade de inclusão legislativa, sendo a alteração legal o meio cabível para garantir a aplicação do princípio da efetividade, privilegiando a autonomia da vontade e a boa-fé. Ter uma caução e não poder executá-la é como “ganhar sem poder levar”, ferindo não apenas os princípios basilares contratuais, mas também a própria efetividade da execução. Portanto, permitir o cumprimento estrito das cláusulas contratuais em consonância com a boa-fé é também uma forma de democratizar o direito à moradia e de equilibrar a proteção individual e os interesses coletivos.
Ao garantir que todos os envolvidos nos contratos de locação ajam com transparência e honestidade, pressupostos dos arts. 422, 219 e 187 do Diploma Civil, fomenta-se um ambiente mais seguro e acessível para todos que dependem da locação para ter acesso à moradia.
Em conclusão, a alteração da legislação para incluir a caução imobiliária entre as exceções à impenhorabilidade do bem de família é uma medida necessária para assegurar a efetividade das garantias locatícias e promover a justiça nas relações contratuais. Essa mudança legislativa traria maior segurança jurídica, equidade e confiança ao mercado imobiliário, beneficiando tanto locadores quanto locatários.
Conclusões
Diante de todo o exposto, este trabalho proporcionou uma análise abrangente dos contratos de
locação e das garantias associadas, elucidando as diferentes formas de proteção disponíveis para locadores e locatários. A discussão sobre o bem de família e a impenhorabilidade revelou a importância da proteção patrimonial, ao mesmo tempo que destacou as limitações dessa proteção no contexto das garantias locatícias.
A Análise Econômica do Direito evidenciou como a violação à presunção da boa-fé pode afetar negativamente o ambiente imobiliário, levando a desequilíbrios e a inseguranças jurídicas. A investigação sobre comportamento contraditório e declarações falsas em contratos de locação reforçou a necessidade de maior rigor e transparência nas relações contratuais.
Em conclusão, a falsa declaração de existência de outros bens pelo caucionante compromete gravemente a efetividade do processo judicial. O princípio da efetividade urge que os direitos reconhecidos sejam realmente concretizados, e a execução do contrato deve assegurar a penhora dos bens garantidos quando legitimamente oferecidos, especialmente quando não se trata de contrato de adesão. Quando o contrato se baseia em declarações falsas as quais visam induzir outrem em erro, a presunção de veracidade é quebrada, deixando o locador desamparado e incapaz de executar a garantia de maneira eficaz. A legislação processual, ao extrair do devido processo legal o princípio da efetividade, busca assegurar que os processos judiciais sejam instrumentos eficazes para a realização dos direitos materiais das partes. A falsidade do caucionante subverte essa lógica, criando um obstáculo para a execução da garantia e comprometendo a utilidade do processo judicial. Portanto, a falsa declaração do caucionante atinge diretamente à efetividade do processo judicial, frustrando o locador que confiou nas informações fornecidas e esperava contar com a garantia para assegurar seus direitos.
Por fim, a proposta de inclusão da caução locatícia no rol de exceções da Lei 8.009/1990
(LGL\1990\21) visa proporcionar uma solução mais equitativa para as situações em que a penhora se torna necessária para garantir o cumprimento das obrigações contratuais. Essa mudança legislativa poderia promover um equilíbrio mais adequado entre a proteção patrimonial e a segurança jurídica nas relações locatícias, gerando maior efetividade tanto no processo judicial de cobrança por inadimplência quanto no mercado imobiliário como um todo. Ao criar uma pequena exceção à hipoteca tradicional, seria possível permitir a excussão da garantia prestada por meio de caução hipotecária em contratos de locação, independentemente de beneficiar o casal ou a entidade familiar.
Isso contribuiria para evitar os impactos de declarações falsas, garantindo mais confiança e segurança aos envolvidos. Assim, locatários adimplentes seriam beneficiados, evitando prejuízos decorrentes da inadimplência de outros, e a segurança dos contratos seria reforçada,
desincentivando comportamentos maliciosos que visam lesar as partes envolvidas.
Referências
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1 .GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores: Edvaldo Brito, Reginalda Paranhos de Brito. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. Inclui bibliografia e índice. ISBN 978-65-5964-564-0. p. 309.
2 .DE TRIBUNAIS BRASILEIROS, Observatório das Decisões; GAMBERA, Marcos Tadeu, 2019. A impenhorabilidade do bem de família do fiador nos contratos de locação comercial no Recurso Extraordinário 605.709/SP: análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Observatório das Decisões de Tribunais Brasileiros, p. 115.
3 .Apesar da necessidade de registro, o STJ já entendeu que a ausência de registro da hipoteca não afasta a exceção à regra de impenhorabilidade prevista no art. 3º, V, da Lei 8.009/90; portanto, não gera a nulidade da penhora incidente sobre o bem de família ofertado pelos proprietários como garantia de contrato de compra e venda por eles descumprido (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.455.554 – RN 2014/0077399-4. Relator: Ministro João Otávio de Noronha. Julgado em 14 de junho de 2016. Publicado no DJe de 21 de junho de 2016).
4 .Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia:
I – caução;
II – fiança;
III – seguro de fiança locatícia;
IV – cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.
Art. 38. A caução poderá ser em bens móveis ou imóveis.
§ 1º. A caução em bens móveis deverá ser registrada em Cartório de Títulos e Documentos; a em bens imóveis deverá ser averbada à margem da respectiva matrícula.
5 .SILVA FILHO, Elvino. as Medidas Cautelares no Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, n. 22, p. 7.
6 .Lei 8.009/1990, art. 3º, inc. V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; […]. (g.n.).
7 .DINIZ, Maria Helena. Lei de locações de imóveis urbanos comentada: (Lei 8.245, de 18-10-1991). 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
8 .MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, 5: direito das obrigações 2ª parte. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
9 .Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
[…] III – prestar fiança ou aval; Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal. Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público, ou particular, autenticado.
10 .DE TRIBUNAIS BRASILEIROS, Observatório das Decisões; GAMBERA, Marcos Tadeu, 2019. A impenhorabilidade do bem de família do fiador nos contratos de locação comercial no Recurso Extraordinário605.709/SP: análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Observatório das Decisões de Tribunais Brasileiros, p. 119.
11 .ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil: famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
12 .TOLEDO, André Medeiros; DE MEDEIROS NETO, Elias Marques. Proposta de uma possível relativização da impenhorabilidade do bem de família. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 19, n. 2, 2018.
13 .ASSIS, Araken de. Manual de execução. 17. ed. São Paulo: Ed. RT, 2015.
14 .TOKARS, Fábio. Por uma Law and Economics tupiniquim. Estado do Paraná, Curitiba, 13.01.2008.
15 .RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; GALESKI JUNIOR, Irineu. Teoria geral dos contratos: contratos empresariais e análise econômica. 1ª edição em ebook, baseada na 2ª edição impressa. Editora Afiliada, 2015.
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19 .Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Art. 219. As declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
20 .DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Execução. Salvador: JusPodivm, 2009.
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24 .TARTUCE, Flávio. A polêmica do bem de família ofertado. Revista da EMERJ, v. 11, n. 43, p. 233, 2008.
25 .DINIZ, Maria Helena. Lei de locações de imóveis urbanos comentada: (Lei 8.245, de 18-10-1991). 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 154-155.