O Judiciário tem garantido a familiares o direito à chamada herança digital. Em recente decisão, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) liberou a uma mãe o acesso aos dados do ID Apple da filha morta para a recuperação de fotos e vídeos no celular. O entendimento foi o de que, mesmo sem uma legislação específica, esse tipo de patrimônio, como pode ter conteúdo afetivo ou econômico, pode sim integrar o espólio e ser objeto de sucessão.
Segundo advogados, decisões como essa estão cada vez mais comuns, mesmo que ainda não haja um consenso sobre o tema, pela falta de previsão legal – algo que a reforma do Código Civil, em trâmite no Senado Federal, se aprovada, deve resolver.
Quando o argumento patrimonial é demonstrado, a autorização tem sido concedida. Casos que envolvem perfis de redes sociais rentáveis – situação frequente entre artistas, escritores e influenciadores – ou recuperação de criptomoedas e milhas aéreas.
Os julgadores também levam em consideração o aspecto afetivo. No TJSP, esse ponto foi analisado pelos desembargadores. “Não se verifica justificativa para obstar o direito da única herdeira de ter acesso às memórias da filha falecida, não se vislumbrando, no contexto dos autos, violação a eventual direito da personalidade da de cujus, notadamente pela ausência de disposição específica contrária ao acesso de seus dados digitais pela família”, diz em seu voto o relator do caso, desembargador Carlos Alberto de Salles (processo nº1017379-58.2022.8.26.0068).
No TJDFT, a 8ª Turma Cível também garantiu a uma mãe o acesso a fotos, vídeos e conversas no celular e no relógio Apple Watch da filha morta. No acórdão, os desembargadores destacam o valor sentimental das informações e a importância da discussão (processo nº 0736808-22.2022.8.07.0001).
Mas quando pesa mais o direito de personalidade, intransferível pelo artigo 5º da Constituição, os herdeiros não têm conseguido acesso às contas digitais do morto. “Nesses casos em que envolve a imagem e reputação, o Judiciário tem sido mais cauteloso e resistente, a não ser que haja evidência forte de que aquilo era vontade do falecido”, afirma a advogada Patrícia Peck, sócia-fundadora do Peck Advogados. Ao contrário de quando é demonstrado o interesse econômico. “Seja pela baixa de uma pendência ou porque a pessoa tinha algo a receber pela rede social, pode integrar o patrimônio da herança”, completa Patrícia.
O mais próximo que se tem de “regulamentação” hoje e que tem sido usado para embasar decisões judiciais é o Enunciado nº 687 do Conselho da Justiça Federal (CJF), redigido por juristas em 2022, durante a IX Jornada de Direito Civil, que comemorou os 20 anos do Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Ele afirma que “o patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo [manifestação de última vontade]”.
Esses dois documentos citados no enunciado corroboram com a recomendação dos especialistas: a fim de evitar litígio, o ideal é deixar registrado como será o uso do patrimônio digital no testamento ou em um documento sobre as últimas vontades. Além de listar a relação de bens móveis, imóveis e investimentos, o mais indicado é já inserir ali a autorização (ou não) do acesso e gestão das redes sociais, arquivos em nuvem, contas de e-mail, tokens e sites.
Segundo o advogado especialista em direito digital Renato Opice Blum, como a legislação não faz distinção entre ativos digitais e físicos, em regra, todos os bens de uma pessoa são transmitidos quando há morte. “A jurisprudência majoritária é de que a transmissão de bens digitais é possível”, afirma. A exceção, acrescenta, é quando o patrimônio digital afeta o direito de privacidade do falecido – aí que as decisões podem ser negativas ao acesso.
Mesmo com a autorização do juiz, ainda há a dificuldade de muitas plataformas não terem subsidiárias no Brasil, o que pode impedir o cumprimento da sentença e o acesso à herança digital. Por isso, Opice Blum tem recomendado aos clientes no escritório detalhar se, o que e como a administração dos bens digitais deve ser feita. “No testamento, ela pode dizer o que os herdeiros vão receber, em que condições, em que o prazo e quais os arquivos.”
Ele lembra do projeto que busca reformar o Código Civil, em tramitação no Senado Federal. Segundo Blum, tanto o projeto quanto a jurisprudência majoritária dos tribunais buscam reforçar essa tendência. “O projeto traz a necessidade de organizar o acesso do patrimônio digital antes de morrer, o que é melhor, pois a pessoa pode escolher o que quer fazer com ele e isso ajuda a desburocratizar.”
A previsão está no artigo 1791-A da proposta legislativa. Nele, deixa expresso que “os bens digitais do falecido, de valor economicamente apreciável, integram a sua herança”. Também detalha o que podem ser esses bens digitais: “senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais (com uso comercial), contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do falecido”.
Mas a reforma do código pode não resolver tudo, como as situações em que o aspecto econômico não for o central. “Há uma zona nebulosa que vai acabar sendo decidida de forma judicial, que é se posso ter acesso às contas quando não houver conteúdo patrimonial’, afirma Patrícia Peck, adicionando ainda que, em casos mais simples, como simplesmente deletar o perfil na rede social, algumas plataformas têm aceitado a certidão de óbito para a exclusão.
Nos cartórios, o que se verifica é um aumento do número de testamentos em geral – incluindo ou não a herança digital. Segundos dados do Colégio Notarial do Brasil (CNB), houve uma alta de 15,4% nos últimos cinco anos, de 2019 para 2023. Na avaliação do vice-presidente do CNB/SP, Andrey Guimarães, o tema deixou de ser tabu. “Boa parte da vivência no mundo hoje é digital, onde ocorrem as relações, manifestações de pensamento e ações financeiras. Então o tema ganhou relevância e as pessoas começaram a perceber a importância de se estabelecer regras e evitar litígios”, diz.
Além do testamento, ele cita as “diretrizes antecipadas de vontade”, que podem produzir efeitos quando a pessoa ainda está em vida, mas sem condições de se manifestar, a exemplo de participar de um reality show ou por doença.
Nos dois documentos, Guimarães lembra que é possível prever os mínimos detalhes sobre como deve ser – ou não – a gestão dos bens digitais. “Às vezes, a pessoa pode ter receio de autorizar acesso a caixa de e-mails ou redes sociais, porque ali podem ter informações que não quer que os herdeiros vejam”, diz.