O Judiciário tem concedido divórcio mesmo após a morte de um dos cônjuges, desde que o pedido de dissolução do casamento tenha sido solicitado ainda em vida. Há decisões de segunda instância e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a favor do chamado “divórcio pós-morte” – que não tem previsão legal, mas é tratado no anteprojeto do novo Código Civil, em discussão no Senado.
Essas decisões geram efeito sobre a herança, que o ex-cônjuge deixa de ter direito. Ele só participa da divisão dos bens comuns determinados pelo regime de casamento escolhido – 50% dos bens na comunhão universal, 50% dos bens comuns na comunhão parcial ou nenhum bem se o regime era de separação total e não há nada em testamento. Há ainda efeito previdenciário. Perde-se o direito à pensão por morte do INSS.
Apesar de os casos nas Varas de Família tramitarem em segredo de justiça, é possível ter acesso às ementas. Geralmente, são os filhos do cônjuge morto que dão sequência ao processo de divórcio.
Por ora, o divórcio pós-morte tem sido admitido apenas via decisão judicial. Mas o parágrafo 4º, inciso V, do artigo 1571, do anteprojeto do Código Civil, em discussão no Senado, prevê expressamente que “o falecimento de um dos cônjuges ou de um dos conviventes, depois da propositura da ação de divórcio ou de dissolução da união estável, não enseja a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data estabelecida na sentença como aquela do final do convívio”.
Foi o entendimento adotado recentemente pela 4ª Turma do STJ, em decisão unânime. O caso analisado foi o de um homem que ajuizou ação de divórcio cumulada com partilha de bens contra a esposa, que morreu durante a tramitação do processo. O ex-marido pedia a extinção do processo sem resolução do mérito.
No entanto, o juízo de primeiro grau decidiu pela habilitação dos herdeiros no processo e julgou procedente o pedido de divórcio póstumo, decisão que foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) e agora pelos ministros do STJ.
O relator do recurso, ministro Antonio Carlos Ferreira, entendeu que a partir da Emenda Constitucional nº 66/2010, o divórcio passou a ser um direito potestativo – ou formativo – dos cônjuges, cujo exercício decorre exclusivamente da vontade de um de seus titulares. Destacou que, no caso, embora a esposa não tenha sido a autora da ação, ela manifestou claramente sua concordância com o pedido do marido e ainda pediu o julgamento antecipado do mérito quanto ao divórcio.
De acordo com a decisão do ministro, “o respeito à vontade da pessoa proclamada em vida tem norteado a jurisprudência desta Corte em casos que envolvem matéria sucessória, e com muito mais razão deve orientar o olhar sobre questões de Estado, cujo conteúdo alcança diretamente a dignidade do cônjuge” (processo em segredo judicial).
Na 3ª Turma do STJ, há decisão monocrática do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Ele analisou o pedido de divórcio de um homem que morreu meses depois, vítima de um AVC. No caso, o casal não tinha filhos em comum, mas os filhos dele entraram com processo para decretar o divórcio pós-morte.
“Não faz sentido querer ser herdeiro do cônjuge do qual estava se divorciando”
— Rolf Madaleno
Segundo a decisão do ministro, “a dissolução da vida conjugal traduz um direito potestativo, exigindo-se para decretação do divórcio apenas a vontade de uma ou de ambas as partes”. Para Cueva, “a inequívoca vontade de ambas as partes de não mais estarem em matrimônio não impede que, em razão do óbito de uma delas, não se decrete o divórcio” (REsp 2007285).
Em segunda instância, há decisões em São Paulo, Minas Gerais e Maranhão. O Tribunal de Justiça mineiro (TJMG) foi provavelmente o primeiro a se manifestar sobre o assunto. O divórcio pós-morte foi concedido em 2021, em julgamento 4ª Câmara Cível, por maioria de votos. No caso, já havia a separação de fato e, em novembro de 2020, o ex-marido morreu vítima de covid-19. A única herdeira dele pediu a continuidade do processo.
No TJSP, já existem decisões que reconhecem a possibilidade de divórcio pós-morte com efeito retroativo à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Em um dos julgados, o cônjuge sobrevivente pediu a desistência da ação, mas a filha do falecido pediu a homologação da medida. Alegou que o pai e a madrasta já estavam separados há dois anos e que ele já havia constituído união estável com outra pessoa, que pedia os direitos de companheira.
De acordo com a advogada Aline Braghini, do CM Advogados, a ratificação pelo STJ vem demonstrar uma uniformização do tema, já que alguns tribunais negam pedidos por entender que o casamento é extinto pela morte. Para a advogada, essas decisões que reconhecem o divórcio pós-morte são acertadas, “pois fortalecem o princípio da autonomia da vontade das partes, resguarda valores primordiais da dignidade humana e liberdade do indivíduo, prezando pela boa-fé e celeridade”.
O professor Rolf Madaleno, que é diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e participou da elaboração do anteprojeto no novo Código Civil, afirma ser absolutamente a favor dessas decisões. “São coerentes, pois não faz sentido pretender ser herdeiro do cônjuge do qual estava se divorciando só porque antes do decreto de divórcio ele morreu.”