A pandemia do COVID-19 vem repercutindo diretamente nas relações de trabalho: suspensão do contrato, redução da jornada e do salário, home office, adiantamento de férias, antecipação dos feriados, alterações no banco de horas, adiamento do pagamento do FGTS, entre muitas outras mudanças. Entretanto, um assunto pontual tem sido muito discutido nas redes sociais nos últimos dias.
Como é sabido, nos últimos tempos, visando evitar ao máximo a aglomeração de pessoas, atos de autoridades foram publicadas a fim de impossibilitar a continuidade de atividades econômicas consideradas não essenciais ou não adequadas ao momento. Com isso, apesar dos esforços, os economistas não só preveem demissão em massa de trabalhadores, como ela já está acontecendo: estima-se que cerca de um milhão de pessoas perderam seus empregos até meados de abril. [1]
Assim sendo, o art. 486 da Consolidação das Leis Trabalhistas ganhou visibilidade, afinal, poderia tratar-se da solução que os pequenos e médios empresários precisariam neste momento tão delicado. Diz o artigo que, em caso de ato de autoridade municipal, estadual ou federal ou de lei ou resolução que motive a paralisação das atividades econômicas, e, por consequência, inviabilize a continuidade dos contratos de trabalho celebrados, prevalecerá o pagamento de indenização aos empregados demitidos, o qual ficará a cargo do governo responsável pelo ato. Trata-se do Factum Principis.
O chamado Factum Principis ou fato do príncipe dava-se quando o Estado Monárquico, representado pelo príncipe, influenciava diretamente nas atividades econômicas daquele principado.[2] No presente, esta teoria está representada pelo art. 486, que deve ser aplicado quando houver, então, ato do governo interferindo em negócios. Exemplo disso foi o impedimento de outdoors na cidade de São Paulo em 2006.[3]
Todavia, a interpretação adequada ao referido dispositivo legal foi muito discutida. De pronto, nota-se que sua principal finalidade seria proteger o empregado, além de deslocar a responsabilidade do empregador sobre o pagamento da parcela indenizatória ao governo responsável pelo ato que paralisou as atividades.
Logo, é importante tomar conhecimento das duas principais correntes de pensamento que se formaram: de um lado, juristas que defendem que a paralisação das atividades econômicas é diretamente motivada por ato do Poder Público, cabendo a este o pagamento das parcelas indenizatórias dos contratos de trabalho rescindidos, aplicando-se, então, o art. 486.
De outro lado, interpretação de que o ato que determinou a descontinuidade dos negócios não se deu por motivos próprios do governo, que está tão somente adotando orientações internacionais, como as da Organização Mundial da Saúde. Nesta interpretação, trata-se de uma situação de força maior, portanto, não haveria que se falar em transferência da responsabilidade ao governo.
Contudo, tal imbróglio foi solucionado com a sanção da Lei 14.020, publicada no dia 06 de julho de 2020, colocando uma pá de cal no assunto ao estabelecer em seu artigo 29 que a hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais, determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus, não é causa de fato príncipe e, por consequência, não aplicada à regra prevista no artigo 486 da CLT.
Ou seja, a paralisação temporária ou definitiva do trabalho ocasionada pelas medidas de quarentena determinadas pelo governo não possibilitará a dispensa dos empregados com isenção do pagamento da parcela indenizatória do contrato. Por sua vez, ressaltamos a pandemia ocorrida continua sendo hipótese de força maior e a extinção total da empresa ocasionada exclusivamente por tal condição enseja o pagamento de metade da multa indenizatória do FGTS, nos termos do artigo 502 da CLT.
Ponderamos, contudo, que eventual falsa alegação de extinção da pelo motivo de força maior é causa de reintegração dos empregados estáveis e complementação da indenização já percebida pelos não estáveis, sem prejuízo do pagamento da remuneração atrasada, conforme artigo 504 da CLT
Referências:
[1] DEMITIDOS durante a pandemia ultrapassam 1 milhão, estima o governo. Correio Braziliense: Economia. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/04/29/internas_economia,849441/demitidos-durante-a-pandemia-ultrapassam-1-milhao-estima-o-governo.shtml
[2] VIVEIROS, Luciano. CLT Comentada. 9. ed. Rio de Janeiro: Fórum, 2018.
[3] MARTINS, Arthur Felipe das Chagas; PINA, Priscilla Boscarato Masselli. Posso dispensar meu empregado e mandar o governo pagar a rescisão: sobre o art. 486 da CLT. Disponível em: https://esaoabsp.edu.br/Artigo?Art=175
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Carolina Monteiro (carolina@gomesaltimari.com.br)
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