Nos últimos anos, a inteligência artificial deixou de ser um tema restrito aos laboratórios de pesquisa ou às grandes empresas de tecnologia e passou a fazer parte do cotidiano de organizações de todos os setores. Seja na automação de processos, no atendimento ao cliente ou em análises preditivas, a IA já é uma realidade que desafia as empresas a tomarem decisões agora, independentemente do grau de maturidade digital ou do ambiente jurídico em que estão inseridas.
Esse avanço é particularmente visível no atendimento ao cliente. Agentes virtuais já resolvem cerca de 30% das demandas em bancos e serviços, e a pesquisa State of Service da Salesforce aponta que, até 2027, esse índice deve chegar a 50%. Em alguns casos, empresas já registram entre 70% e 80% dos atendimentos conduzidos exclusivamente por IA.
É justamente nesse contexto que a governança corporativa, os riscos e a área de compliance (GRC) assumem um papel estratégico e, eu diria, indispensável. A ausência de posicionamento estratégico sobre IA, seja ele normativo, técnico ou ético, já representa um risco para qualquer negócio. Inovar com responsabilidade precisa vir antes até mesmo da regulação.
Realidades distintas, desafios comuns
Cada país tem seguido caminhos diferentes na busca por equilibrar inovação e responsabilidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, há um ambiente fértil para a inovação, mas sem uma regulação federal específica para IA. Isso significa que empresas que operam em diferentes estados precisam lidar com regras distintas, como o California Consumer Privacy Act (CCPA) na Califórnia. Essa fragmentação cria um cenário regulatório complexo e difuso, em que o risco de não conformidade pode ser tão relevante quanto o desafio de inovar.
Na União Europeia, ocorre o oposto. Com o AI Act, que classifica aplicações de IA por níveis de risco, busca-se proteger direitos fundamentais antes mesmo da adoção massiva da tecnologia. O objetivo é nobre, mas esse excesso de cautela tem impacto direto sobre a competitividade. Estudo da Comissão Europeia estima que a regulação excessiva pode estar gerando um déficit de €500 bilhões anuais em investimentos privados em inovação, com reflexo claro no número de unicórnios: apenas 7% dos unicórnios globais têm origem europeia, contra cerca de 50% nos EUA.
Já o nosso país, por sua vez, ainda está alguns passos atrás. Temos em tramitação o Projeto de Lei 2.338/2023, mas com termos ainda genéricos que demandam aprofundamento. Como já ocorreu com o Marco Civil da Internet e a LGPD, nossa tendência é seguir modelos europeus. Enquanto isso, empresas brasileiras têm criado comitês internos de IA e diretrizes próprias de uso, o que mostra que o mercado pode se antecipar e adotar práticas responsáveis mesmo antes da definição regulatória.
Um desafio adicional para o Brasil está na infraestrutura. Dependemos fortemente de servidores externos para processar modelos de IA generativa, o que gera riscos relacionados à soberania, privacidade e segurança. Esse é um ponto em que a governança precisa atuar não apenas como guardiã de regras, mas também como catalisadora de discussões estratégicas sobre o futuro digital em solo nacional.
O papel estratégico do GRC
Estes três contextos distintos demonstram que a inteligência artificial não pode ser regulada ou aplicada sob um modelo universal. No entanto, em todos os casos, a área de governança deve assumir protagonismo como bússola da organização.
Isso significa articular princípios, políticas, critérios de supervisão e diretrizes éticas que guiam a aplicação da tecnologia. O dilema entre a pressa de avançar e o medo de errar precisa ser resolvido com base em estruturas sólidas de GRC. Cabe a elas garantirem que a adoção da IA seja feita com responsabilidade, equilíbrio e visão de futuro. Ao invés de apenas reagir a normas externas, as empresas podem, e devem, construir internamente as condições para que a inovação ocorra de maneira ética, transparente e sustentável.
Tenho visto na prática que as organizações que encaram a governança como parte da estratégia e não apenas como uma obrigação burocrática, são as que conseguem inovar com mais segurança. Elas entendem que a tecnologia é um meio e que o verdadeiro diferencial competitivo está na capacidade de utilizá-la sem renunciar a valores fundamentais.
Fonte: Tiinside