Enquanto o Congresso ainda discute projeto de lei sobre uso da inteligência artificial (IA) e o governo revisa a estratégia para adoção da tecnologia, diversos órgãos públicos implementam ou estudam o uso dessas ferramentas no Executivo, Legislativo e Judiciário.
Mesmo sem orientação normativa clara, instituições como o Tribunal de Contas da União (TCU) e Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) já usam padrões sofisticados, como a IA generativa. Muitos órgãos, porém, especialmente no âmbito municipal, ainda lidam com processos em papel, precisando passar pelo estágio inicial da modernização dos sistemas – a digitalização.
O Brasil lançou a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial em 2021. O documento foi considerado pouco ambicioso e muito superficial diante do grande potencial da tecnologia para o ganho de eficiência na economia e no funcionamento da máquina pública.
“A estratégia que a gente tem é muito deficitária, a gente precisa caminhar para uma estratégia mais forte, mas é só o primeiro passo. Precisa ter um regramento para a implementação”, disse o professor da FGV Direito Rio e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade, Filipe Medon.
A atual estratégia aborda questões éticas e estimula órgãos a promoverem “a conscientização do uso de IA em seu corpo técnico”. Medon avalia que falta cultura de governança para o uso de inteligência artificial no país.
A diretriz do Executivo está sendo revisada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que, em paralelo, elabora o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. É um complemento à estratégia com ações em áreas como saúde, educação e segurança. A minuta do plano será apresentada na Conferência Nacional de Ciência, no início de junho, em Brasília.
“A gente precisa caminhar para uma estratégia mais forte”
— Filipe Medon
No Congresso Nacional, a tramitação do projeto sobre o uso da IA está parada na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil, no Senado. O texto prevê diretrizes e limites para uso da IA para utilização de sistemas considerados de alto risco. A proposta do Congresso prevê regras para a administração pública, como a exigência de protocolos de utilização que permitam registrar quem utilizou o sistema, para qual situação e finalidade.
Desde março de 2023, quando houve o lançamento da ferramenta mais conhecida de IA generativa, o ChatGPT-4, o debate sobre até que ponto empresas e órgãos públicos podem delegar as decisões a uma máquina foi intensificado.
Laura Schertel Mendes, professora da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e relatora na comissão de juristas no Senado sobre regulação do uso da IA, defende que o uso pelo Estado pode trazer maior eficiência e economia de recursos, mas ressalta que sistemas devem ser auditáveis, com uso seguro.
Ela destaca que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) traz uma “proteção relevante” em sistemas alimentados por dados pessoais. Ressalta, porém, que o marco legal da IA é “fundamental para trazer mais confiança e segurança jurídica na utilização da inteligência artificial pelo Estado”.
O Ministério da Gestão e da Inovação (MGI) acompanha a adoção da IA por entes federais que, em grande parte, nem sequer têm previsão de implantar um projeto, segundo autodiagnóstico do Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação.
O TCU desponta como referência no uso da IA em processos internos e fiscalização de contratos e atividades de órgãos federais. Após explorar o padrão clássico de IA, o tribunal adotou, em junho de 2023, um assistente virtual baseado em IA generativa, o ChatTCU.
Ao Valor o secretário de Tecnologia da Informação e Evolução Digital do TCU, Rainério Leite, afirmou que a nova plataforma orienta o trabalho de auditores e funciona em um “ambiente protegido”, para preservar dados sigilosos. Este cuidado é adotado para que a base pública de informações não fique exposta à aprendizagem de máquina das grandes empresas de internet que oferecem o serviço.
Em abril, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as economias mais desenvolvidas, indicou o TCU como “instituição de ponta” no uso de IA entre 59 organizações de 39 países. A partir de agora, o código-fonte do ChatTCU será cedido a outros órgãos públicos, iniciando pelo MGI e pelos tribunais de contas de Distrito Federal, Acre e Ceará.
Hoje, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) usa a IA para identificar a venda irregular de medicamentos na internet. A agência já tirou do ar mais de 200 mil anúncios irregulares, após detecção por sistema automatizado.
Outro exemplo de uso de IA na gestão pública é o Banco Central (BC), que estuda aplicações para agilizar processos internos de supervisão do sistema financeiro. A autoridade monetária informou que não possui nenhum normativo interno para disciplinar o uso de IA, mas iniciou estudos para criar uma política de governança.
O Serpro, estatal que desenvolve tecnologia para órgãos como Receita Federal e Tesouro Nacional, mantém 200 desenvolvedores para buscar inovação em IA, segundo o seu presidente, Alexandre Gonçalves Amorim. A empresa, disse, trabalha com IA desde 2016.
O Senado utiliza um algoritmo para auxiliar na distribuição de demandas para consultoria legislativa e na transcrição de declarações nas comissões e sessões plenárias, e ainda mantém grupo de trabalho interno para definir estratégia de desenvolvimento da IA visando “o uso de forma regulada e segura”. Por lá, os modelos “são utilizados como suporte aos processos de trabalho dos analistas e não como uma ferramenta independente”.
Na semana passada, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicou alta de 26% no uso da IA dentro do Judiciário em 2023. O juiz federal Rafael Leite Paulo, que acompanha no CNJ as iniciativas de IA nos tribunais, considera que a tecnologia pode contribuir para eliminar o estoque de processos judiciais.
O magistrado contou que a IA deverá ajudar a dar preferência ao trâmite de casos mais urgentes, “para evitar um perecimento do direito”, ou ainda sugerir acordos entre as partes, ao identificar “situações mais propícias a uma autocomposição”. Em benefícios dos juízes, a IA já pode elaborar resumos, relatórios ou destacar informações que servem de “insumo” para tomada de decisão.
“A IA atual, sem nem precisar de novas evoluções, tem grande capacidade de identificar o argumento relevante numa massa gigantesca de texto, destacar a questão fática, o ponto central de alguma discussão jurídica para juiz”, reforçou.