A Justiça de São Paulo condenou a ViaQuatro, concessionária da linha 4-Amarela do Metrô de São Paulo, ao pagamento de multa de R$ 100 mil e a impediu de reativar o sistema de câmeras para reconhecimento facial de passageiros, tendo como base, também, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
“O reconhecimento facial ou mesmo a mera detecção facial, sem que seja possível a identificação concreta do indivíduo, mas com acesso à sua imagem e face, parece já esbarrar no conceito de dado biométrico, legalmente considerado como dado pessoal sensível, daí porque merece tratamento especial à luz da Lei nº 13.709/2018”, disse a juíza Patrícia Martins Conceição, da 37ª Vara do Foro Central Cível de São Paulo.
A decisão foi tomada em ação civil pública movida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e pela Defensoria Pública paulista. De acordo com a entidade, ela foi a primeira do gênero no país em uma ação coletiva. A magistrada enfatizou a necessidade do consentimento prévio dos usuários para que os dados deles sejam coletados e, ainda, que a validade do consentimento está condicionada à disponibilização de informação clara e específica sobre a captação e tratamento de dados.
“Essa é uma decisão inédita e que mostra como precisamos avançar em nossa cultura de coleta de dados. Não é admissível que uma empresa que atenda milhares de pessoas por dia coloque em prática um sistema como esse sem informação adequada, sem transparência e ainda sem pedir consentimento. É uma clara prática abusiva, já que o transporte público é serviço essencial, e as pessoas não tinham qualquer informação de que aquela coleta de dados estava ocorrendo”, afirma o advogado do programa de direitos digitais do Idec, Michel Roberto de Souza.
De acordo com a magistrada, “os usuários não foram advertidos ou comunicados prévia ou posteriormente acerca da utilização ou captação de sua imagem pelos totens instalados nas plataformas, ou seja, os usuários nem mesmo tem conhecimento da prática realizada”.
A empresa argumentou, nos autos do processo, que as portas digitais não captam imagens definidas atribuídas a pessoas identificadas, mas apenas detecta rostos e expressões. Explicou, ainda, que “a tecnologia empregada não se relaciona ao reconhecimento facial, apenas à detecção de rostos classificáveis em categorias de expressões, gênero e biotipos”.
De acordo com a ViaQuatro, não há armazenamento de imagens nem tratamento de dados pessoais, uma vez que só coleta dados para fins estatísticos. Defendeu a legalidade das instalações, pois a concessionária do Metrô aufere receitas advindas dessa atividade publicitária, tendo sido autorizada pelo poder concedente.
“A tecnologia embarcada nas Portas Interativas Digitais se limita a contar as pessoas, visualizações, tempo de permanência, tempo de atenção, gênero, faixas etárias, emoções, fator de visão, horas de pico de visualizações e distância de detecção, sem que para isso colete qualquer dado pessoal de pessoa individualizada. Apenas são gerados dados meramente estatísticos”, enumerou.
A magistrada, contudo, ressaltou que tal limitação de o sistema usar das imagens dos usuários apenas para tabulação de estatísticas, sem efetiva captação, gravação ou identificação não foi demonstrada nos autos, ônus que incumbia à ré.
“Veja-se que a ré, em mais de uma oportunidade, deixou de pleitear a realização de perícia nos equipamentos e sistemas operacionais a eles vinculados, prova essencial à comprovação de suas alegações, requerendo apenas e de forma genérica a utilização como prova emprestada do laudo pericial produzido nos autos nº 1003122-02.2018.8.26.0704, providência inadmissível como já analisado”, apontou.
Patrícia Martins Conceição enfatizou que a LGPD estabeleceu proteção especial aos dados pessoais sensíveis, autorizando o tratamento deles somente na hipótese de consentimento claro e específico pelo titular do dado, ou, sem o consentimento do titular em hipóteses que não a da ViaQuatro.
“Não é demais lembrar que o artigo 2º da referida lei preconiza como fundamento da disciplina da proteção de dados, dentre outros, o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, a defesa do consumidor, os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade e a dignidade. Ainda, a finalidade do tratamento deve ter propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades.”
Um dos pontos que a ACP do Idec destacava era a falta de transparência da iniciativa, por não existir qualquer indicação nas intermediações do Metrô acerca da existência do sistema, e as câmeras ficavam “camufladas”, ou seja, praticamente imperceptíveis. O sistema ainda permitia a obtenção de receita a partir da venda desses dados para terceiros, que poderiam então direcionar suas estratégias de publicidade a partir das reações identificadas.
A prática já havia sido interrompida após uma liminar concedida em setembro de 2018 contra a coleta de dados de som e imagem dos usuários. Naquele momento, a juíza responsável afirmou ainda não estar clara a finalidade da captação de imagens. Mas entendeu que deveria ser “objeto de ostensiva informação aos passageiros, inclusive diante da natureza pública do serviço prestado”.
A decisão da última sexta-feira (7/5) também confirmou o pagamento de indenização por danos morais coletivos, que deverá ser destinado ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).
Fonte: Ana Pompeu; Débora Brito – JOTA. Acesso em: 10/05/2021