As últimas informações dão conta de que a Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério de Direitos Humanos – Área de Pessoas com Deficiência, não foi bem acolhida pelo Poder Judiciário. Por outro lado, há notícias de liminares favoráveis às pessoas. O Direito, como sempre, impregnado de dúvidas, a exigir de todos os necessários esforços para as tentativas de elucidação.
No Direito não se pode falar em cometimento de erro por parte de quem o Ordenamento reconhece como competente para interpretá-lo e aplicá-lo. Logo, o juiz ou a juíza não erram, como não erram também as autoridades fiscais que interpretam e aplicam as leis tributárias. É tudo questão de interpretação de fatos e de normas. E tudo dependente de como estes fatos e normas são apresentados para quem os deve analisar e decidir.
Princípios são normas máximas do Direito, isso é premissa sagrada. Mas, o problema dos princípios é que invariavelmente eles trazem uma carga axiológica muito elevada, e que se sobrepõe a uma análise mais direta, lógica e objetiva. Alguns até possuem uma definição quase matemática, o que facilita a verificação se foi violado ou não, como é o caso do princípio da anterioridade tributária ou da legalidade tributária.
Essa carga axiológica acaba influenciando na interpretação como um todo, ao ponto de a pessoa encarregada de aplicar o Direito deixar-se levar por ela, e nela buscar os argumentos que a permitam decidir da maneira que ela acha correto.
Por isso que, paralelo a uma análise principiológica é sempre necessária uma análise também da parte operacional do Direito, pois só ela permite saber se foi feito o que tinha de ser feito; do modo que deveria ter sido feito; no momento que deveria ter sido feito e se pelas mãos de quem deveria ter feito.
As mudanças impostas à concessão de isenção para as pessoas deficientes vieram por meio de lei. Foi a Lei 17.293/2020 que alterou o artigo 13 e que introduziu o artigo 13-A na Lei 13.296/2008. Logo, naquela linha de quem deve fazer o que, podemos dizer que as alterações foram feitas por quem de direito, já que o Poder Legislativo dispõe de competência privativa para legislar. O que se pode questionar em relação à lei é exatamente que foi colocado pelo Ministério Público na Ação Civil Pública acima referida. Muito bem colocado, diga-se de passagem.
A regulamentação das mudanças fica ao encargo do Poder Executivo, o que o Governo do Estado fez ao editar o Decreto nº 65.337/2020. Logo, também naquela linha de quem faz o que, podemos dizer que o decreto foi feito por quem de direito.
Em relação ao Decreto, no entanto, sendo ele um decreto meramente regulamentar de uma lei tributária, ele tem a função restrita de regulamentar a lei, o que chama a aplicação do artigo 99 do CTN.
Art. 99. O conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei.
Portanto, em relação ao Decreto não se pode dizer que com ele se fez o que devia ser feito, nem que se fez do modo que deveria ser feito, porque o Decreto 65.337/2020 nitidamente extrapola os limites de sua atuação ao dizer mais do que a lei 17.293/2020, pois criou obrigação nela não prevista. Vê-se, pela nova redação dada ao artigo 4º do Decreto 59.953/2013 (O decreto regulamentar do IPVA em São Paulo), que nele foi inserida a exigência de que o veículo da pessoa deficiente seja identificado com um adesivo, de modo a evidenciar que se trata de um veículo de propriedade de deficiente. Claro que a previsão é discriminatória e viola direitos da pessoa deficiente, mas não é esse o foco aqui, já que apenas tencionamos levantar as irregularidades na operacionalização das alterações na legislação.
A questão de se saber se a operacionalização das alterações deram-se no momento legalmente previsto, isto é, se foram implementadas nos momentos legalmente adequados, traz para a discussão o problema da eficácia temporal das alterações. Segundo o CTN, revogação de isenção deve obedecer ao comando do inciso III do artigo 104.
Art. 178 – A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104
Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda:
(…)
III – que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178.
O fato gerador do IPVA é o dia primeiro de janeiro de cada ano, de modo que se pode afirmar que a entrada em vigor das alterações foi concomitante à ocorrência do fato gerador, suscitando a dúvida de qual teria adquirido eficácia primeiro, para então se definir se é ou não devido o IPVA 2021. Mas, esta dúvida é restrita para os casos futuros, isto é, para as análises dos pedidos feitos a partir de primeiro de janeiro de 2021, já que, de nenhum modo há autorização legal para que se retroajam estas alterações permitindo-as atingir situações já consolidadas na vigência da legislação antão alterada. Aqui as disposições legais aplicáveis são o inciso XXXVI do artigo 5º da CF/88 e o artigo 106 do CTN.
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;
II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como infração;
b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.
Indiferente a tudo isso, a Secretaria da Fazenda lançou o IPVA 2021 para todos os veículos, inclusive para os que estavam beneficiados com a isenção. Disso se conclui que a Secretaria da Fazenda entendeu que as isenções antes concedidas estavam revogadas. Será que se pode assim interpretar? A lei pode realmente revogar isenções? Sim. A lei pode revogar isenções, não há dúvida. Como também não há dúvida de que a revogação de isenção é regulada pelo artigo 178 do CTN acima transcrito. Como também não há dúvida de que a revogação da isenção deve obedecer ao princípio da anterioridade. Como também não há dúvida de que a lei nova não pode retroagir e não pode violar o ato jurídico perfeito, que foi o ato de concessão da isenção.
A observação que cabe é que a revogação de isenções pela lei gera efeitos diferentes conforme seja o tipo de isenção, o que está bastante claro no artigo 178 do CTN. Na interpretação deste artigo não se deve desprezar a ressalva “salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições” que, analisada conjuntamente com o artigo 179 do mesmo CTN vai nos dizer que são dois tipos de isenção: 1-a isenção de caráter geral e não condicionada, e 2-a isenção individual e condicionada. A revogação da isenção geral dá-se de maneira simples e direta pela lei, que deve obedecer, de qualquer modo, ao princípio da anterioridade. A isenção individual e condicionada, do mesmo modo que não se efetiva diretamente do comando da lei (vide artigo 179 do CTN), também não se revoga diretamente do comando da lei, mas sim do ato administrativo de revogação, que será efetivado ante às constatações elencadas pelo artigo 155 do CTN, ao teor do que determina o artigo 179.
Art. 179. A isenção, quando não concedida em caráter geral, é efetivada, em cada caso, por despacho da autoridade administrativa, em requerimento com o qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei ou contrato para sua concessão.
2º O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.
Art. 155. A concessão da moratória em caráter individual não gera direito adquirido e será revogado de ofício, sempre que se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições ou não cumprira ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor, cobrando-se o crédito acrescido de juros de mora:
Ainda que a lei revogadora cesse a isenção impedindo a sua concessão em pedidos futuros, esta lei não atinge as isenções em curso, cujo vigor obtiveram na lei revogada e que dura até que se comprovem uma das hipóteses do arrigo 155. A isenção concedida no ano de 2020 ou em anos anteriores vigorará pelo tempo que a pessoa deficiente for proprietária do veículo, cessando apenas quando ela vender ou morrer, ou quando o IPVA deixar de existir, o que não configura casos de revogação. A revogação só e tão somente pelas causas do artigo 155.
Disso resulta que a revogação de isenções individuais e concedidas em função de condições e requisitos deve ocorrer no bojo de um processo administrativo no qual se efetivaram providências tendentes a comprovar que a pessoa não preenchia as condições para obtenção, apesar de ter obtido, ou que, no curso da isenção deixou de preencher as condições. Tudo isso, claro, obedecendo aos princípios do contraditório e ampla defesa.
Fica, assim, muito fácil a afirmação de que as isenções não foram revogadas, pois nenhuma das pessoas foi cientificada da abertura, em seu nome, de um procedimento de verificação.
O lançamento e cobrança do IPVA configuram invasão na esfera jurídica dos particulares sem o devido processo legal, o que é vedado e configura violação à Lei 10.177/98, que no artigo 7º prevê o seguinte:
Artigo 7º – A Administração não iniciará qualquer atuação material relacionada com a esfera jurídica dos particulares sem a prévia expedição do ato administrativo que lhe sirva de fundamento, salvo na hipótese de expressa previsão legal
Além disso, este lançamento também configura violação à Lei Complementar Estadual 939/2003 (código do contribuinte), que pelo artigo 9º exige a expedição prévia de Ordem de Fiscalização, que não existiu.
Artigo 9º – A execução de trabalhos de fiscalização será precedida de emissão de ordem de fiscalização, notificação ou outro ato administrativo autorizando a execução de quaisquer procedimentos fiscais…
Isso nos garante que este lançamento e cobrança são improcedentes. Mas, a improcedência maior está exatamente na falta de previsão legal para a implementação das alterações em relação às pessoas deficientes autorizada a dirigir o veículo.
A Lei 13.296/2008 traz, pelos artigos 13 e 13-A, o primeiro alterado e o segundo inserido pela Lei 17.293/2020, as previsões das isenções para pessoas deficientes, que são de duas espécies, uma delas prevista pelo artigo 13, que é isenção para as pessoas deficientes autorizadas a dirigir o veículo, e outra pelo artigo 13-A, que é a isenção para pessoa não autorizada a dirigir o veículo.
A Secretaria da Fazenda não observou que o recadastramento, em tese permissivo do lançamento e cobrança do IPVA 2021, está previsto pelo artigo 13-A (§5º), sendo, portanto, aplicável somente para a isenção regulada por este artigo 13-A, que é a isenção para pessoas deficientes não autorizadas a dirigir o veículo. Não há a mesma previsão no artigo 13, significando que Lei 17.293/2020 não impôs este procedimento também para as isenções das pessoas deficientes autorizadas a dirigir o veículo. Nem o Decreto 65.337/2020 trata do recadastramento. Logo, o lançamento e a cobrança do IPVA 2021 contra estas pessoas são absolutamente indevidos.
Lançamento e cobrança de tributo indevido podem configurar crime. Crime de excesso de exação, previsto pelo §1º do artigo 316 do Código Penal.
Excesso de exação
§ 1º – Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa
Nada mais resta a dizer, exceto que, quem fez, fez o que não podia fazer, do modo que não era o indicado e no momento que não era o previsto. Agora, fica por conta do Poder Judiciário avaliar e corrigir tudo isso. E aos demais, rezar, para que então o Judiciário faça o que deve ser feito, do modo que deve ser feito e no momento que deve ser feito, com o que estará nos dizendo se é assim que o Direito deve funcionar, ou não.
Este material foi elaborado para fins de informação e debate e não deve ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
José Carlos Cardoso Souza (jccardoso@gomesaltimari.com.br)