Qualquer curioso que busque um livro sobre compliance empresarial poderá encontrar muitas e boas obras em língua portuguesa. A crescente regulação que seguiu à Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção) e a onda de casos de persecução corporativa por desvios de conduta e corrupção, capitaneada pela operação Lava-Jato, forneceu material farto para juristas e cientistas sociais desenvolverem uma doutrina brasileira sobre a legislação anticorrupção aplicável às empresas e sobre que tipo de medida preventiva é esperado delas.
Contudo, se esse mesmo curioso for um amante dos livros mais antigos e quiser encontrar uma obra escrita antes de 2010, muito provavelmente será obrigado a conduzir a leitura em inglês, já que quase a totalidade dos textos sobre o assunto é baseada no estudo da Lei Americana Anticorrupção (em inglês, Foreign Corrupt Practices Act – FCPA), que desde 1977 pune a corrupção internacional de empresas com operações nos Estados Unidos.
Foi o FCPA que inaugurou essa nova cepa de normas que passou a colocar as empresas no foco da repressão à corrupção pública, utilizando-se de instrumentos responsivos para incentivar a adoção, por parte das empresas, de mecanismos preventivos, detectivos e de resposta, conjuntamente apelidados de “programa de compliance”.
O FCPA não define o que seria um bom programa de compliance. Porém, com o passar dos anos, os casos concretos foram obrigando as autoridades dos países a avaliar, caso a caso, o grau de culpabilidade das empresas para conseguir arbitrar acordos e acusações de modo justo, forçando-as a julgar a qualidade dos programas de compliance das organizações sob investigação.
Justamente por isso e, de modo a garantir uma maior uniformidade das decisões, os órgãos que aplicam o FCPA nos Estados Unidos – Comissão de Valores Mobiliários (SEC) e o Departamento de Justiça (DOJ) – passaram a emitir documentos para os próprios membros para ajudá-los nessa avaliação. Ou seja, criaram um paradigma sobre o que seria considerado um programa de compliance eficiente e efetivo.
O principal documento emitido nesse sentido é o chamado “Diretrizes de Sentença” (do inglês, Sentencing Guidelines) que, ao estabelecer um padrão para avaliação dos órgãos de punição, tornou-se também o principal guia para as empresas implementarem programas, uma vez que todas as organizações com operação nos Estados Unidos passaram a considerar esse documento como o principal e mais seguro paradigma sobre o que é bom e o que é ruim no mundo do compliance anticorrupção.
Naturalmente, isso explica o motivo pelo qual as diretrizes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos sobre compliance são importantes para as empresas multinacionais ou americanas. Mas, e as organizações que só operam no Brasil e o que isso importa para elas?
Primeiramente, há o caso daquelas empresas que, apesar de não terem operações nos Estados Unidos, possuem transações ou negócios que envolvam território, moeda ou parceiros americanos, modo que acabam expostas direta ou indiretamente à aplicação da lei daquele país. Porém, mesmo aquelas que não possuem qualquer tipo de elemento de conexão com o território ou com a economia americana devem se beneficiar de atentar às manifestações do Departamento de Justiça.
A lei anticorrupção brasileira não obrigou as empresas com negócios no Brasil a implementarem um programa de compliance focado em anticorrupção (chamado também de programa de integridade). Apesar disso, normas subsequentes passaram a obrigar algumas organizações em situações específicas a implementar, ao menos parte desses controles, sendo alguns exemplos as empresas estatais e suas subsidiárias, obrigadas pela Lei 13.303/16, e as participantes de licitações públicas com alguns órgãos, entes federados ou empresas públicas como, por exemplo, a Petrobras.
Mesmo para as não obrigadas, a norma deixou claro que a existência de um programa adequado deveria ser considerado pelas autoridades quando da decisão punitiva, o que ganha particular importância uma vez que a lei brasileira adotou a responsabilidade objetiva, ou seja, a empresa será punida independentemente de dolo ou culpa dos agentes e dos administradores.
No caso brasileiro, foi o decreto 8.420/15, que regulamenta a lei, que estabeleceu um paradigma legal sobre os elementos a serem considerados para a avaliação de um programa de compliance, listando 16 elementos básicos que um programa de integridade efetivo deve ter. Além disso, o principal órgão de aplicação da lei no Brasil, a Controladoria Geral da União (CGU), emitiu guias específicos para a avaliação de programas de integridade por parte das autoridades e para orientar empresas na implementação dos próprios programas.
Tudo isso poderia indicar, assim, que o paradigma brasileiro já está posto e nada tem a ver com o dos Estados Unidos, e que as empresas que operam apenas nas fronteiras brasileiras não teriam motivo para observar o que dizem as autoridades de lá. Isso, contudo, seria um erro.
A legislação brasileira nunca escondeu ser tributária da norma americana, assim como – de modo muito louvável – as autoridades brasileiras sempre deixaram claro que usam o mais experimentado arcabouço americano como uma importante fonte de regulação e interpretação e uma bússola na exploração desse novo e complexo terreno. Além disso, se o que se busca é que o programa de integridade funcione. É inegável que não se pode ignorar as dicas dadas por quem analisa programas do tipo há mais de quatro décadas, sobretudo, pelo fato de que as autoridades americanas consistentemente emitem novos documentos atualizando a visão que tem sobre o tema.
Essas diretrizes são relevantes sobretudo considerando que as autoridades americanas periodicamente editam novos documentos, provendo importante atualização e indicação aos profissionais da área sobre qual caminho seguir. É nesse contexto que é importante a leitura atenta, mesmo para as empresas 100% brasileiras, do novo memorando editado pelo DOJ nas últimas semanas.
Profundamente focado na efetividade do programa de integridade, o memorando é prático e, dentre diversos pontos, sublinha a importância de uma abordagem personalizada para cada empresa, a qual deve construir e consistentemente reavaliar o programa frente aos riscos e à realidade. Em uma área do conhecimento reconhecidamente nova e com rarefeita regulação, mas onde os riscos são altos demais para o flerte com o amadorismo, pensar fora da caixa é necessário. Nesse caso, fora da caixa significa além das fronteiras.
Fonte: Emerson Melo; Raphael Soré – JOTA. Acesso em: 20/08/2020.