A inteligência artificial deixou de ser tendência e passou a ser infraestrutura: hoje, ela compõe trilhas para lojas, cria locuções, edita vídeos, escreve roteiros e fornece imagens para campanhas. Isso reduz custos e acelera a produção, mas também acende uma luz amarela: quem é o titular quando o conteúdo é gerado por IA? O que pode ser cobrado em execução pública? E como provar que a trilha utilizada não está sob gestão coletiva? Essas dúvidas já fazem parte do dia a dia das empresas e, quando não são endereçadas, resultam em cobranças, notificações e riscos jurídicos.
A base legal brasileira ainda parte da premissa de autoria humana. A IA, por definição, não é pessoa e não pode ser autora, o que cria lacunas práticas sobre arrecadação e distribuição quando o conteúdo nasce de modelos generativos. Para quem atua no varejo e na indústria, isso impacta diretamente o orçamento, o compliance de marketing e a governança da marca.
Em poucas linhas: o que são direitos autorais e o que faz o ECAD:
- Direitos autorais (LDA 9.610/98): protegem obras intelectuais (música, texto, imagem etc.). O autor é sempre pessoa física; a IA não pode ser titular.
- Execução pública: ocorre quando a música é tocada em ambiente de acesso coletivo (lojas, eventos, parques)..
- ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição): entidade responsável por arrecadar valores de execução pública e distribuir aos titulares cadastrados (autores, intérpretes e produtores). A jurisprudência reconhece sua legitimidade para cobrar mesmo sem prévia identificação da obra executada ou filiação do titular, já que o sistema de gestão coletiva opera por cadastro e regras próprias de repasse.
O caso Spitz Park x ECAD e por que virou referência
O que a empresa alegou: desde novembro de 2024 substituiu trilhas tradicionais por músicas geradas por IA (Suno) e, por isso, não estaria executando repertório administrado pelo ECAD. Requereu a suspensão das cobranças, reconhecendo que as músicas não estavam cadastradas nas bases do ECAD.
O que o Tribunal decidiu, até agora: em sede de Agravo de Instrumento, negou a tutela de urgência, ou seja, manteve as cobranças provisoriamente, por entender que não havia probabilidade do direito e que o tema exige contraditório e prova técnica (sobre autoria, originalidade e enquadramento legal). Trata-se de decisão em cognição sumária; o mérito ainda será analisado na instrução.
Pontos-chave do voto/decisão
- Padrão da tutela recursal: exige a presença cumulativa de probabilidade de provimento do recurso e risco de dano grave;
- Fato relevante: o próprio ECAD reconheceu não possuir cadastro das obras nem comunicação de gestão individual; ainda assim, defendeu a manutenção da cobrança, alegando que não foi cumprida a regra de dispensa prevista no artigo 98, § 15 da LDA (que exige comunicação prévia pelo próprio titular);
- Tese do ECAD sobre IA: além da questão formal, o ECAD sustentou que modelos como a Suno são treinados em obras e fonogramas protegidos, o que poderia gerar derivação ou semelhança e, portanto, justificar a cobrança até que perícia técnica prove o contrário. Para reforçar, juntou parecer técnico-musical explicando o funcionamento do modelo e apontando semelhanças entre faixas geradas e obras conhecidas. (Trata-se de tese em disputa, não de decisão final).
O gargalo do repasse: mesmo que haja recolhimento, surge a dúvida: para quem repassar, se a trilha não tem titular humano identificado e não está cadastrada? O próprio processo expõe essa fricção: sem cadastro ou comunicação válida, o sistema de distribuição fica sem destinatário.
Práticas de governança de conteúdo
Diante das incertezas, ainda não é possível traçar um caminho seguro para isentar a cobrança de direitos autorais nesses casos. Contudo, algumas práticas de governança podem mitigar responsabilidades e organizar a gestão do conteúdo:
- Reforçar a transparência da cadeia criativa, registrando a ferramenta utilizada, versão do modelo, prompts, revisões e aprovações;
- Realizar checagens técnicas de semelhança antes da veiculação e arquivar relatórios comparativos;
- Quando houver um único titular humano identificável, avaliar a hipótese legal de dispensa mediante comunicação prévia pelo próprio titular, observados os requisitos normativos aplicáveis;
- Estruturar contratos com fornecedores prevendo declarações de não infração, dever de indenizar, entrega de logs e cooperação em eventual perícia;
- Formalizar políticas internas que definam papéis de criação e validação, fluxo com o jurídico, critérios de retenção de evidências e plano de contingência para substituição rápida de trilhas;
- Ressalte-se que tais práticas são apresentadas em caráter informativo, e sua adoção depende das particularidades de cada caso e da respectiva robustez probatória.
Lacuna legislativa e próximos passos (o que esperar)
Atualmente, a Lei de Direitos Autorais (LDA) parte da premissa de autoria humana e considera a inteligência artificial apenas como ferramenta. Esse enquadramento deixa vácuos práticos quando não há titular identificável para fins de arrecadação e distribuição. No curto prazo, é provável que as decisões judiciais mantenham postura cautelosa, afastando qualquer hipótese de “isenção automática” e valorizando cada vez mais a prova técnica (logs, registros da cadeia de criação e análises de similaridade devem ganhar peso nos processos).
Em um horizonte de médio prazo, tende a haver o surgimento de boas práticas setoriais, pautadas na transparência, na documentação mínima e em fluxos claros de comunicação, além de ajustes operacionais na gestão coletiva para tratar de obras geradas por IA sem titular humano claramente afiliado. Já no longo prazo, o debate sobre eventual atualização da LDA poderá abarcar critérios para atribuição de autoria em outputs assistidos por IA, exigências de transparência no processo criativo, regras de licenciamento de bases de treinamento e mecanismos de distribuição nos casos em que não houver titular identificável. Com isso, busca-se reduzir a assimetria hoje existente entre arrecadar valores e ter condições jurídicas de distribuí-los de forma legítima.
Pela lei vigente, a inteligência artificial é considerada ferramenta, não autora. O caso Spitz x ECAD demonstra que, sem prova robusta e sem o cumprimento dos ritos legais (quando cabíveis), é improvável afastar a cobrança já de início, transferindo a discussão para o mérito, a ser definido em perícia. Enquanto o marco legal não evolui, o debate deve permanecer ancorado em evidências técnicas e na transparência da cadeia criativa.
Vale destacar que a decisão ainda está sujeita a recurso, o que pode trazer novos desdobramentos ao caso.
Alertamos que este material foi elaborado para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. Os advogados do Gomes Altimari Advogados estão à disposição para oferecer esclarecimentos adicionais sobre o tema.
Felipe Castro da Costa – felipe@gomesaltimari.com.br