A herança digital tem se tornado um dos temas atuais mais instigantes, unindo Direito Sucessório e Direito Digital.
Com a crescente digitalização das relações pessoais e profissionais, surge a necessidade de refletir sobre o destino de perfis em redes sociais, arquivos em nuvem, criptomoedas, senhas e demais ativos digitais após a morte do titular.
A ausência de regras claras no Código Civil acerca da herança digital tem gerado incertezas. Atualmente, a questão é tratada de forma indireta, seja por disposições testamentárias seja pela interpretação de normas gerais de sucessão. No entanto, apesar de não haver legislação específica, o debate doutrinário e jurisprudencial avança, acompanhado de projetos de lei em tramitação que buscam regulamentar a matéria.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento do REsp 2.124.424, deu um passo inédito ao reconhecer a possibilidade de inclusão da herança digital em inventários, neste caso específico julgado no STJ a inventariante pediu acesso ao computador a fim de identificar bens de valor econômico ou afetivo.
A relatora Nancy Andrighi alertou que a abertura irrestrita do dispositivo pode expor informações protegidas pelo direito da personalidade, então, ela propôs a criação de um incidente processual de identificação de bens digitais, com nomeação de um “inventariante digital”, profissional habilitado para acessar o equipamento, manter sigilo e listar o conteúdo encontrado.
Segundo a ministra, o juiz, com base nessa listagem, decide quais bens são transmissíveis e quais devem ser preservados, essa classificação é ato jurisdicional indelegável, também defendeu que o “inventariante digital” possa administrar temporariamente alguns bens até o fim do inventário, ressaltando que a falta de lei específica tem levado à perda de patrimônio digital no país. Ela votou por dar parcial provimento ao recurso, determinando o retorno do processo ao 1º grau para seguir o procedimento sugerido.
No campo legislativo, diversos projetos tramitam no Congresso Nacional, como o PL 4.847/2012, o PL 7.742/2017 e, mais recentemente, o PL 4/2025, que propõe a definição do que pode compor a herança digital, incluindo senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos.
O debate se concentra em dois grandes eixos:
(i) Patrimônio: Arquivos digitais com valor econômico (como textos, músicas, obras de arte, conteúdos monetizados em plataformas, ideias, ativos digitais e outros) tendem a integrar o espólio e podem ser transmitidos aos herdeiros.
(ii) Direitos da personalidade: Dados ligados à intimidade, privacidade e à própria imagem do falecido apresentam maiores restrições, já que muitos doutrinadores, defendem que tais bens são intransmissíveis, devendo ser extintos com a morte, salvo manifestação expressa do titular.
O doutrinador Pablo Malheiros, em seu artigo “Transmissibilidade do acervo digital de quem falece: efeitos dos direitos da personalidade projetados post mortem.” defende que não há sucessão hereditária de bens jurídicos qualificáveis como direito de personalidade, o que abrange arquivos e (ou) as contas digitais como Whatsapp, Telegram, Facebook, Intagram, “nuvens” de arquivos, senha de telefones celulares e outros, a não ser que em vida o autor da herença autorize por testamento ou de outra forma a transmissão desses bens.
Essa distinção demonstra a complexidade do tema, de um lado, o direito à continuidade do patrimônio digital, de outro, a preservação da privacidade do falecido e dos terceiros que interagiram com ele. O impasse reforça a urgência de uma legislação que garanta segurança jurídica, respeite a dignidade da pessoa humana e considere a proteção de dados (à luz da LGPD – Lei nº 13.709/2018).
A herança digital desafia o Direito Sucessório tradicional, impondo a necessidade de conciliar direitos patrimoniais e personalíssimos. O avanço jurisprudencial e legislativo é promissor, mas ainda insuficiente para solucionar os inúmeros conflitos práticos.
Nesse cenário, a regulamentação clara é essencial para equilibrar interesses dos herdeiros, a autonomia do falecido e a proteção da privacidade. Enquanto a lei não é aprovada, recomenda-se que os indivíduos manifestem, em vida, sua vontade quanto ao destino de seus ativos digitais, seja por testamento ou pelas próprias ferramentas oferecidas por provedores.
Essa previsão permite que a autonomia da vontade seja respeitada, evitando que o Judiciário tenha de decidir, de forma incerta, sobre o destino da herança digital, já que a manifestação expressa do falecido constará em documento hábil.
A herança digital é um campo em construção, que exige diálogo entre Direito, tecnologia e sociedade, para que se possa dar continuidade justa e segura à memória e ao patrimônio virtual.
Em um mundo cada vez mais digital é fundamental que as pessoas, ao pensar em seus bens sucessórios, pensem e organizem também os intangíveis digitais que só tendem a crescer.
Conclui-se, portanto, que, em existindo dúvida sobre como regularizar a herança digital, se mostra de suma importância a busca por um profissional especializado sobre o assunto, a fim de garantir uma solução prática e eficaz.
Alertamos que este material foi elaborado para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. Os advogados do Gomes Altimari Advogados estão à disposição para oferecer esclarecimentos adicionais sobre o tema.
Fernando Pavesi – fernando@gomesaltimari.com.br
Carollyne Bueno Molina – carollyne@gomesaltimari.com.br