Em m 2022, a SEC, responsável pela regulação do mercado de capitais nos Estados Unidos, determinou que as empresas listadas nas bolsas de valores americanas deveriam adotar a cláusula de “clawback”. A cláusula prevê a devolução à empresa dos bônus obtidos irregularmente e vale, inclusive, para empresas estrangeiras. Agora, a B3 lança luz à discussão no Brasil. Na audiência pública sobre mudanças no regulamento do Novo Mercado, a bolsa questionou se devemos adotar cláusulas de “clawback” no segmento destinado às empresas que se comprometem com a adoção de práticas de governança que vão além do exigido no arcabouço regulatório. A discussão promete.
“Clawback” é uma política de recuperação de remuneração variável baseada em demonstrações financeiras que contenham erros materiais e que são posteriormente corrigidas e reapresentadas. Ou seja, é um instrumento que protege a companhia e os acionistas de arcar com o ônus econômico da compensação erroneamente concedida. “Clawback” ajuda a manter a confiança dos investidores nos mercados — e o nosso mercado precisa desse reforço reputacional. Não é preciso ir longe na memória para lembrar de uma fraude contábil travestida de cultura organizacional.
Ainda que sua implantação nos EUA seja recente, as discussões sobre a “clawback” vêm de ao menos uma década atrás. No estudo “Does voluntary adoption of a clawback provision improve financial reporting quality”, publicado em 2012 (dez anos antes da exigência da SEC), os autores Ed Dehaan, Frank Hodge e Terry Shevlin destacaram: “Nossa análise revela melhorias significativas na qualidade real e percebida dos relatórios financeiros após a adoção da ‘clawback’”. Foi observado, também, um aumento na remuneração dos CEOs sujeitos à cláusula.
Punição ou ressarcimento?
Ao discutir a adoção da “clawback” precisamos discutir também quem fica sujeito a ela. A Australian Prudential Regulation Authority, responsável pela regulação do mercado australiano, define que o gerente sênior, o diretor executivo ou o tomador do risco estão sujeitos à cláusula. São, portanto, os responsáveis por ressarcir a companhia.
No Reino Unido, a Financial Conduct Authority é mais específica: a “clawback” abrange apenas os empregados que participaram da tomada de decisão que resultou em perdas significativas.
Em outra ponta está a SEC, que coloca sob o chapéu da “clawback” todos os administradores estatutários, independentemente da participação na elaboração das demonstrações financeiras. Neste formato, podemos entender que o principal objetivo da “clawback” é reduzir o enriquecimento individual injusto por meio da proteção e do ressarcimento da companhia. Este chapéu, de aba mais larga, tende a gerar mais aversão das companhias e mais discussão sobre ônus e bônus de uma nova regra.
Apesar de a B3 apenas ter perguntado ao mercado sobre a “clawback”, isso não significa que há uma proposta na mesa para as companhias listadas no Novo Mercado. Se houver, no futuro, elas próprias poderão escolher se acatam a regra ou não — segundo o regulamento do Novo Mercado, uma mudança no segmento de listagem pode ser implementada caso não haja rejeição de mais de um terço das suas integrantes.
Mas vale lembrar que a “clawback” pode chegar ao Brasil por outra via. Tramita desde 2019, o projeto de lei (PL) 866, de autoria do senador Alessandro Vieira (atualmente no MDB). A proposta visa a alterar a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) para permitir que a pessoa jurídica recupere incentivos financeiros devidos ou pagos a dirigentes e administradores, em caso de atos cometidos contra a administração pública. O texto chegou a ser aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos, em 2021, e desde então aguarda relatoria no Senado Federal.
Seja pela via legislativa ou autorregulatória, cabe discutirmos a “clawback” com atenção. Reaver bônus ganhos ilicitamente exige um arcabouço regulatório eficiente, empresas capazes de identificar e punir fraudes, além de investidores de olhos bem abertos.