Desde a publicação da Lei Geral de Proteção de Dados, a possibilidade de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes ocasionou diversas dúvidas e temores no mercado, posto que o §1º do art. 14 da LGPD prevê a necessidade do consentimento de um dos pais ou responsável legal para que as informações referentes a essa categoria especial de titulares de dados possam ser coletadas, processadas, armazenadas e compartilhadas pelas empresas.
Ocorre que, ao se imaginar como operacionalizar a obtenção de autorização dos pais ou responsável legal da criança para o tratamento desses dados pessoais, se percebe com facilidade a existência de inúmeros entraves para que as empresas possam viabilizar suas atividades, bem como para que possa o consentimento ser obtido de maneira livre, específica, informada, inequívoca e destacada.
Uma das maiores limitações existentes na utilização exclusiva do consentimento parental para o tratamento de dados pessoais de crianças se encontra em uma contradição contida no próprio texto legal, uma vez que o caput do art. 14 leciona que, quando do processamento das informações de menores, o melhor interesse da criança deve ser observado. Vejamos.
Nesse sentido, o Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão governamental incumbido de fiscalizar, orientar e aplicar sanções sobre e com fundamento na LGPD, em seu primeiro pronunciamento sobre o tema, editou o Enunciado CD/ANPD nº 01/2023, dispondo que o “tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes poderá ser realizado com base nas hipóteses legais previstas no art. 7º ou no art. 11 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), desde que observado e prevalecente o seu melhor interesse, a ser avaliado no caso concreto, nos termos do art. 14 da Lei.”
Ao adstringir o tratamento de dados pessoais das crianças ao consentimento parental, por vezes, se vislumbra a própria violação ou não atendimento ao melhor interesse do infante, como em situações onde há risco de vida, uma urgência, bem como para que direitos básicos como educação e saúde sejam plenamente atendidos e garantidos.
A exemplo disso, pode-se citar a execução de políticas públicas que processam base dados, a fim de erradicar determinada doença infanto-juvenil por meio de companhas e programas de vacinação, a utilização de base de dados de desempenho de alunos de instituições de ensino para desenvolver, aprimorar ou modificar o método de estudo ou, ainda, a extrema necessidade de resguardar o direito à vida de uma criança vítima de um acidente, por meio de comunicação às autoridades competentes e responsáveis.
Em outros casos, utilizar apenas da hipótese autorizativa do consentimento de um dos pais ou responsável legal, pode gerar uma ideia ilusória da efetividade desta autorização. Se a organização opta por coletar o consentimento para todo e qualquer tratamento, nasce nela uma sensação de isenção de responsabilidade, deixando o ônus apenas e tão somente a cargo daqueles que autorizaram.
Em outro cenário, existe a possibilidade de os pais ou responsável legal não possuírem o discernimento necessário para efetivamente consentir com o tratamento dos dados pessoais de seus filhos, uma vez que muitas atividades ocorrem virtualmente. Para uma grande parte dos responsáveis, navegar plena e efetivamente na internet, não se amolda como possibilidade, devido a fatores sociais, econômicos e educacionais, fato este que possui potencial de limitação do tratamento dos dados pessoais das crianças, o que reflete igualmente na limitação de seus direitos, de encontro com o melhor interesse que deve sempre ser perseguido.
No “frigir dos ovos”, basear o processamento de dados pessoais de crianças e adolescentes exclusivamente no consentimento de seus pais, além de ir contra o entendimento da ANPD, coloca em xeque áreas de mercado que processam dados pessoais de crianças em larga escala, por vezes obrigatoriamente, sejam do setor público ou do setor privado e, principalmente os próprios direitos garantidos pela LGPD.
Recentemente, a ANPD publicou um estudo preliminar denominado “Hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes”, momento em que trouxe, de forma ratificada o entendimento exarado no Enunciado CP/ANPD nº 01/2023, dispondo, ao menos preliminarmente, sobre a possibilidade de as empresas utilizarem outras bases legais, que não o consentimento dos pais ou responsável legal para processar informações pessoais de menores de idade, devendo sempre ter como norte e ponto focal dos tratamentos, o melhor interesse da criança e do adolescente.
Sendo assim, de que forma pode-se manter as atividades de uma empresa que necessita trabalhar com dados pessoais de crianças e adolescentes?
A Lei Geral de Proteção de Dados possui, além do consentimento, em seus artigos 7º e 11, tantas outras hipóteses autorizativas que legitimam as empresas públicas e privadas a procederem, de alguma forma, o manuseio de dados pessoais que, inclusive, em determinados casos cumprem com tamanha e maior efetividade o melhor interesse dos menores.
Além das bases legais que podem ser utilizadas, em consonância com o atendimento eterno ao melhor interesse da criança, as organizações devem adequar suas atividades, a fim de implementar medidas técnicas, operacionais e jurídicas para que a devida proteção da intimidade e dos dados pessoais dos infantes sejam consagradas, sem que, contudo, obstaculize a atividade empresarial.
Ao contrário do que vê em redes sociais e profusos anúncios na internet, utilizar o consentimento como base legal primordial nas atividades das empresas, pode acarretar em uma falsa segurança e conformidade com a LGPD, além de tornar os processos operacionais deveras onerosos e ineficientes.
Conclui-se, pois, que, em existindo dúvida de como adequar as atividades de sua organização ou negócio, se mostra de suma importância buscar um profissional especializado sobre o assunto, a fim de garantir conformidade em proteção de dados e segurança jurídica por meio de estratégias e métodos eficazes, aplicados especial e individualmente ao seu negócio.
Este material foi elaborado para fins de informação e debate e não deve ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
Cassiano Rodrigues da Silva Neto – cassiano@gomesaltimari.com.br
Lucas Colombera Vaiano Piveto – lucas@gomesaltimari.com.br