O Brasil tem preparado um pacote regulatório das comunicações digitais desde o Marco Civil da Internet (2014). Enquanto escândalos de violações de dados pessoais no ambiente digital emergiam mundo afora (como na eleição de Donald Trump nos EUA ou na votação do Brexit no Reino Unido, ambas em 2016), tramitou no Congresso Nacional brasileiro a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
A LGPD foi alvo de intensa disputa: foi aprovada no Congresso em agosto de 2018, às vésperas da eleição presidencial de outubro, que marcou um novo patamar na mobilização das redes digitais pelas campanhas eleitorais, sobretudo para disseminação de fake news. Entretanto, disputas políticas postergaram o início da vigência da lei para setembro de 2020 – dois anos após sua aprovação; já as sanções administrativas previstas só se tornaram imponíveis a partir de agosto de 2021 – três anos depois da aprovação da LGPD, portanto.
O chamado PL das Fake News (PL 2630) segue curso semelhante: começou a tramitar depois das eleições de 2018 e foi aprovado pelo Senado em 2020. A expectativa de tê-lo aprovado a tempo das eleições gerais de 2022 foi frustrada. E agora, na metade de 2023, o presidente da Câmara dos Deputados ainda não conseguiu colocar o texto em votação, pois não tem garantido quórum favorável à proposta que vem sendo debatida há anos no Legislativo.
O problema é que, a despeito de algumas definições legais já consolidadas, a legislação existente sobre comunicações digitais ainda se pauta amplamente em princípios – em lugar de definir uma ampla lista de regras com claras hipóteses de incidência e consequências devidas.
O foco em normas principiológicas permite maior adaptabilidade da legislação. Entretanto, tal indeterminação também gera indefinição sobre quais condutas são ilícitas, quais sanções lhe são aplicáveis e quando isso será de fato definido – legislativa ou jurisprudencialmente. A definição de princípios tende a transferir o poder discricionário para as autoridades administrativas ou, em sua ausência, diretamente às autoridades judiciais, sobrecarregando o Judiciário (especialmente TSE e STF), seja em termos de conhecimento técnico e rapidez das respostas, seja em termos de sua legitimidade para tomar decisões pouco “pré-programadas”.
O jogo regulatório se complica, pois além da disputa entre Poderes do Estado, há a dificuldade de construir interfaces entre direito estatal e as ordens jurídicas privadas das plataformas digitais. Reconhecendo que as plataformas digitais têm desenvolvido suas próprias instâncias de moderação de conteúdo – seja para resolver problemas com rapidez e tecnologia, seja para blindar-se contra os direitos estatais-nacionais –, o PL das Fake News incorporava o conceito de “autorregulação regulada”.
A ideia inicial era criar uma entidade independente de regulação das comunicações digitais, de composição mista: com representantes estatais, das plataformas digitais, da academia e dos movimentos de direitos digitais. Aqui estaria um importante mecanismo de aprendizagem, capaz de acompanhar a evolução tecnológica com uma evolução regulatória mais detalhada, mais embasada tecnicamente e mais facilmente mutável que a legislação.
A versão do PL 2630 que estava pronta para votação em maio retirava a previsão de se instituir uma entidade reguladora independente, com expertise e blindagem a pressões políticas e econômicas. Assim, a lei seria instituída sem o dispositivo crucial para a aprendizagem regulatória e para o próprio enforcement de suas regras, princípios e sanções. Afinal, tal entidade deveria ser o nó articulador de uma rede de camadas regulatórias e autorregulatórias, ao mesmo tempo em que teria uma autonomia reforçada, ao contrário de um mero órgão do Poder Executivo subordinado a algum ministério de Estado.
A criação de normas procedimentais e organizacionais permite institucionalizar a aprendizagem para temas novos, que o direito ainda não consegue disciplinar mais profundamente. Ora, pode-se sustentar a hipótese de que, enquanto não for institucionalizada tal tipo de instância regulatória, o que veremos são, de um lado, conflitos pouco controláveis entre os Poderes políticos, de base nacional e legitimação democrática, o Judiciário igualmente nacional e responsável por manter o Estado de Direito e os direitos fundamentais, e as plataformas digitais globais, que buscam fugir aos custos e riscos do seu lucrativo negócio.
Enquanto não houver organizações e procedimentos de aprendizagem regulatória — como no cenário atual —, o tema das fake news terá que ser tratado por meio de medidas discricionárias e de decisões coercitivas (por vezes monocráticas) de juízes, até a consolidação de orientações normativas (jurisprudência, lei) e procedimentos, inclusive procedimentos de coordenação entre Poderes e entre Estado e entes privados.
De um lado, no sistema político vemos a proliferação de associações da “sociedade civil” e, no centro do Poder Legislativo, a formação de diferentes bancadas parlamentares, inclusive uma “bancada das big techs”. Do lado da sociedade civil e da opinião pública, há uma série de demandas conflitantes.
Um grupo político reacionário trata de desprezar a entidade reguladora independente, chamando-a pejorativamente de “Ministério da Verdade” e evocando o temor contra a censura; para coibir a atuação de milícias digitais fascistas, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, como Alexandre de Moraes, defendem a equiparação das responsabilidades das plataformas digitais àquelas das empresas de mídia e publicidade.
Agências reguladoras já estabelecidas (como a Anatel ou o Comitê Gestor da Internet) disputam para assumir as funções relativas ao monitoramento, à supervisão e à punição das fake news; grupos progressistas tentam impor pautas de política identitária para definir o que pode ou não ser dito nas plataformas digitais; criadores e empresas aproveitam para reforçar suas pautas de proteção de direitos autorais; outros líderes políticos e religiosos preocupam-se com os efeitos reais do discurso de ódio propalado pelas mídias digitais.
Enquanto esse emaranhado de lobbies e movimentos, interesses e discursos orbitava a discussão do projeto de lei, algumas plataformas digitais promoveram intensa campanha contra a votação do PL 2630, disparando mensagens em massa a seus usuários, disseminando medo e preocupação com a liberdade de expressão destes de modo a mascarar suas preocupações com custos e eventual redução de lucro condicionada pelos novos mecanismos regulatórios propostos. O próprio STF – por determinação de quem são conduzidos há anos inquéritos sobre fake news e milícias digitais – determinou a investigação de tais plataformas: por fake news sobre a regulação de fake news!
Valendo-se do ganho de obstar, ao menos momentaneamente, a formação do apoio necessário para aprovar a lei, a bancada parlamentar apoiada pelas grandes empresas de tecnologia passou a apresentar propostas de mudanças no projeto para reduzir a margem de responsabilização das big techs e para proteger os próprios parlamentares e suas postagens contra pedidos de remoção.
Por outro lado, as próprias plataformas digitais caminham no sentido de aceitar entidades multissetoriais, de corregulação e autorregulação, a fim de punir e definir o balanceamento entre o mau uso das redes digitais e a preservação da liberdade de expressão. Mesmo que o projeto de lei venha a ser aprovado em breve, não é de se esperar o fim das disputas – pode-se prever ainda uma extensa e intensa “batalha regulamentar” acerca da definição infralegal de normas substantivas, organizacionais e procedimentais.
A função do centro político – o Poder Legislativo, sobretudo – seria canalizar procedimentalmente esse dissenso, conseguindo afinal chegar à aprovação de uma lei eficaz e eficiente. Enquanto o sistema político não cumpre sua função – tomar decisões coletivamente vinculantes – o sistema jurídico se sobrecarrega.
O centro judicial do direito, particularmente os tribunais superiores e mais especialmente ainda seus líderes, são forçados a tomar decisões ad hoc, enfrentando diretamente as plataformas digitais, sem contar para tanto com o anteparo de uma legislação apropriada.
Além da dificuldade de garantir consistência do direito e construir uma jurisprudência capaz de vincular e orientar futuras decisões, esse tipo de movimento acaba inflacionando o próprio direito: ao decidir sem base regulatória e legislativa suficiente (o que manifestaria um apoio político correspondente), o Judiciário desvaloriza a força do próprio direito, tornando mais escassa a conformidade espontânea e tendo que lançar mão de ameaças e punições mais manifestamente coercitivas, o que acaba por retroalimentar a polêmica – ou seja, a falta de apoio político –, diminuindo novamente as chances de construção de consenso em torno da regulação das comunicações digitais.
Enquanto não se institucionaliza a aprendizagem regulatória, o direito e o poder se retroalimentam negativamente, em um círculo vicioso de anomia e impotência, de desautorização e deslegitimação de qualquer estratégia de decodificação e gerenciamento de riscos, enquanto crescem, em um “estado de natureza” virtual, os perigos da comunicação digital, com seu potencial exponencial de viralização e de produção de danos reais, massivos e difusos.
Fonte: JOTA