A popularidade da série “Succession” chegou às reuniões de conselho. “Muita gente só conseguiu pensar seriamente no assunto depois de ver o drama na TV”, diz um conselheiro independente, em condição de anonimato. No drama que ocupou quatro temporadas na HBO Max, os quatro filhos de um empresário competem para substituí-lo quando ele anuncia uma suposta aposentadoria. “Será que todos estamos preparados para uma troca de comando quando chegar a hora?” A preocupação do executivo não é gratuita.
De acordo com pesquisa exclusiva da Talenses Executive, consultoria especializada em cargos de liderança e conselhos, apenas 33% das organizações no Brasil têm um programa formal de preparação de sucessores para a alta cúpula.
“É um número que revela um aspecto preocupante”, avalia João Márcio Souza, CEO da Talenses Executive. Ao não olharem com atenção para o caminho de identificação e desenvolvimento da próxima pessoa a assumir a posição mais alta no organograma, as empresas perdem a chance de fazer um planejamento de longo prazo, destaca. “Por consequência, colocam em risco a continuidade do negócio.”
O estudo, realizado no fim de abril, ouviu 120 companhias, sendo que a maior parcela (22%) tem mil a 5 mil funcionários, de áreas como serviços (34%), indústria (29%) e tecnologia (12%). Do total, 72% são de capital fechado e 28% de administração familiar – 48% têm conselhos administrativos e 13% exibem receita líquida anual acima de R$ 9 bilhões.
A boa notícia do levantamento é que, entre as corporações com programas sucessórios, a maior parte ou 40% preparam um candidato há três anos. “Um plano de sucessão ajuda a tornar o negócio mais resistente às mudanças do mercado, dá transparência ao processo de escolha e maior segurança para investidores e acionistas”, diz Souza.
Na avaliação de Flávia Leão, head no Brasil da consultoria de desenvolvimento e busca de altos executivos Russell Reynolds, uma preparação ideal de um substituto deve rodar cinco anos, antes da modificação definitiva. Caso não seja possível, que comece, no mínimo, com dois ou três anos de antecedência, diz. “Esse período permite que as diretorias mapeiem os profissionais internos ou busquem talentos no mercado.”
Essa cartilha está sendo seguida à risca por João Adibe, CEO da Cimed, indústria farmacêutica com 5 mil funcionários, no mercado desde 1977. “Comecei a pensar [em sucessão] desde que meu primeiro filho nasceu, muito antes de eu virar CEO”, diz Adibe, 51 anos, no posto há 11. “Somos uma empresa familiar e meu pai me preparava para assumir a companhia desde os 14, quando comecei como vendedor.”
Hoje, além de Adibe, a liderança da Cimed – que atingiu R$ 1,9 bilhão de receita líquida em 2022, um aumento de 22,5% em relação a 2021 – é dividida com a irmã, Karla Marques Felmanas, vice-presidente. “Trabalhamos para que a empresa não seja só minha e da Karla, mas de todos os nossos filhos”, diz.
Nessa linha, os três filhos mais velhos de João Adibe (Adibe, Bruna e Esther) e os de Karla (Juliana, Pedro e Eduardo) batem ponto na Cimed. Em caso de sucessão, o cargo que cada um vai ocupar ainda será definido, mas, por serem os primogênitos, Adibe e Juliana já trilham uma jornada de carreira rumo ao topo.
“O Adibe trabalha na Cimed desde os 18, mas neste ano intensificamos estratégias em conjunto e ele passou a me acompanhar em todas as viagens de negociação com clientes”, explica o CEO. “Ele e a Juliana são complementares.”
Adibe Marques, 24, que cumpre expediente na farmacêutica há sete, assumiu a direção comercial há menos de um ano. Nos últimos quatro anos, vem passando por baterias de desenvolvimento profissional, com capacitações e mentorias. “Vi falhas que precisam ser corrigidas e compreendi a importância da comunicação na liderança”, diz o executivo, que dedica de 14 a 16 horas por dia ao escritório.
Para ele, uma sucessão eficiente precisa “costurar” dois pontos: saber dar autonomia ao futuro gestor e ensiná-lo a mensurar resultados. Para quem está nesse caminho, é importante pensar à frente, ensina. Segundo ele, desde que sentou na cadeira principal da área comercial, o mix de mercadorias nos pontos de vendas do grupo cresceu 40% e o faturamento engordou 30%. “Vamos lançar 50 produtos em 2023 e estrear uma categoria de itens estéticos, dirigidos para dermatologistas”, adianta.
A prima Juliana Marques Felmanas, 25, gerente-executiva de planejamento estratégico e relação com investidores, diz que a transição deve acontecer de forma natural, respeitando os interesses da futura liderança. “Nunca fomos ‘forçados’ a trabalhar na Cimed”, lembra ela, no cargo há um ano e na empresa há seis. “Há liberdade de escolha, e isso faz toda a diferença. Cada um foi para a área em que tinha maior interesse.”
Não adianta superproteger ou criar privilégios para os sucessores, sugere o CEO João Adibe. As organizações familiares que quiserem ver alguma continuidade nas mãos dos filhos têm de tratá-los profissionalmente, como o mercado lida com qualquer gestor, diz. “Quero que meus filhos e sobrinhos sejam muito melhores aqui do que eu.”
O dirigente da Cimed diz que quem passa o bastão tem a missão de observar o desempenho do substituto nos degraus iniciais e guiá-lo para não cometer erros “conhecidos”. É essencial deparar com novos equívocos e ter agilidade para corrigi-los, garante João Adibe, ainda sem data marcada para a aposentadoria.
Na Breton, marca de mobiliário de luxo há mais de 55 anos no mercado, a renovação da chefia também avança para a terceira geração, com um movimento definido há três anos. “A empresa foi fundada pelo meu sogro no fim dos anos 1960 e o meu marido, Marcel, sempre esteve à frente dos negócios”, diz Anette Rivkind, 64, diretora comercial do grupo, que tem 800 funcionários e 16 lojas no Brasil.
Em 2020, as cadeiras foram reorganizadas: Anette se manteve na direção de vendas; Marcel Rivkind foi para a presidência do conselho administrativo; e os três filhos do casal, que convivem com os negócios desde cedo, ganharam missões precisas. André Rivkind, 40, assumiu como CEO; Fabiana Feferbaum, 41, é diretora de gente, gestão, tecnologia e sustentabilidade; e Giselle Rivkind, 33, comanda a diretoria de marketing.
Flávia Leão, da Russell Reynolds, lembra que os conselhos de administração estão se apropriando mais da tarefa de planejar as corridas sucessórias. Os colegiados vêm implantando processos mais sofisticados para admissões de CEOs e diretores do C-level, explica. Na série da HBO, por exemplo, o “board” ganha um protagonismo especial no fluxo dos mandantes.
“A nossa decisão se baseou em uma visão de longo prazo”, ressalta Anette Rivkind, na diretoria da Breton há duas décadas. “É importante preparar uma nova geração de líderes capazes de levar a empresa a novos patamares.” Segundo a executiva, sem revelar números, o grupo cresceu 10% em negócios em 2022 ante 2021. Neste ano, a expectativa é evoluir 15%, chegando a 19 lojas, com um primeiro ponto fora do Brasil, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
De acordo com a gestora, a preparação dos sucessores incluiu qualificação empresarial, identificação de habilidades e a paulatina participação do trio em decisões estratégicas – todos atuaram em outras companhias antes de desembarcar nas salas da diretoria. André formou-se em medicina e trabalhou em hospitais, enquanto as administradoras de empresas Fabiana e Giselle percorreram o mercado financeiro.
“Antes de assumir como CEO, passei por todas as áreas da empresa”, garante André Rivkind, que bate cartão no grupo desde 2012 e teve as competências testadas “na marra” no período da covid-19. “Em 2020, tínhamos planos para os próximos cinco anos, mas a meta durou dois meses”, lembra. “O objetivo passou a ser a sobrevivência [financeira] em meio à pandemia, num momento incerto, mas que acabou nos surpreendendo [positivamente]. Os consumidores começaram a ‘olhar’ para dentro de suas casas.” Agora, a expectativa da família é abrir mais dez lojas de móveis nos próximos cinco anos.
Para Gabriela Baumgart, presidente do conselho de administração do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), considerado um “think tank” da área de governança no país, o deslocamento de poder, sobretudo em firmas regidas por parentes, não é apenas uma troca de guarda ou uma transferência de patrimônio. É um método intergeracional contínuo, com transmissão de legados e de uma cultura organizacional, garante.
Em muitas organizações familiares, a simples menção à palavra “sucessão” pode gerar reações desconfortáveis, por estar associada a aspectos delicados, como mortalidade e entrega de influência, destaca. “Por isso, a discussão do tema, geralmente, vira um tabu.” No indicador de negócios de famílias (Family Business Index), da consultoria EY e da Universidade de St.Gallen, na Suíça, o Brasil tem 11 das 500 maiores empresas consideradas familiares no mundo.
Baumgart lembra que cada clã tem um prazo próprio para começar a debater a questão, mas a geração que está na dianteira deve criar condições para que os herdeiros ocupem mais espaços de controle – se assim desejarem. “Para isso, é preciso definir os possíveis papéis que poderão ocupar, como sócios, membros do conselho ou em posições executivas.”
A especialista afirma, baseada em estudos, que as pessoas estão vivendo mais e os jovens estão menos propensos a ter muitos filhos. Com isso, as famílias tendem a ser menores, com uma maior exposição a conflitos geracionais, acredita. “Pelo menos três gerações diferentes podem interagir por anos na gestão de uma organização.”
Vincent Baron, diretor da Naxentia, consultoria especializada na profissionalização de empresas em fase de sucessão ou de preparação para venda, diz que nem toda progressão executiva é um mar de rosas para os envolvidos. “O comum é ter procedimentos ‘não tranquilos’, mal conduzidos, ou não ter nenhum plano [na mesa]”, diz.
O fundador, em geral, se acha insubstituível, é centralizador e pouco objetivo em relação à competência dos herdeiros, continua. “Uma situação que pode gerar rivalidade entre os filhos ou diretores, pois cada um acredita ser o mais competente para tomar o controle.”
Baron, que assessorou, pelo menos, quatro operações de sucessão nos últimos dois anos, lembra de um caso em que o patriarca de uma holding desejava, a qualquer custo, que uma filha assumisse as rédeas do empreendimento – mesmo sem a executiva mostrar vontade ou estar preparada para a tarefa. Ela acabou tomando decisões erradas, com uma piora grave nos negócios, diz.
Em organizações não familiares, o peso de ocupar um posto de decisão pode parecer ainda maior, segundo executivos e especialistas. Principalmente quando o líder que sai tem mais de uma década de hegemonia e, no lugar do suposto “afeto” parental que poderia embalar a dança das cadeiras, o que sobra mesmo, no fim das contas, é uma planilha de metas a cumprir.
“O líder [a que eu sucedi] deixou um legado muito importante para a companhia e entre as pessoas que trabalharam com ele”, diz Isabela Galli, vice-presidente e gerente geral da Avery Dennison na América Latina, que substituiu em janeiro o executivo Ronaldo Mello, há mais de 13 anos no comando regional de uma das maiores fornecedoras globais de etiquetas e autoadesivos.
Na companhia há quase 30 anos, Galli entrou na folha como estagiária e era diretora de marketing e vendas na América Latina quando a chave da sucessão girou. “Foi uma ideia planejada por um longo tempo [por Mello]”, diz. A executiva afirma que o ex-chefe trabalhou por cinco anos para identificar um sucessor e, após comunicar sua retirada de cena, os dois ainda atuaram, lado a lado, por seis meses. “Para ter sucesso em uma nova posição, é crítico entender os objetivos da organização”, afirma.
Ela também acredita, com base na experiência que viveu recentemente, que o tempo é um componente decisivo para uma substituição bem amarrada. “É preciso planejar esse movimento, com um prazo suficiente para identificar o candidato e permitir que a liderança o prepare para o cargo”, diz Galli, que desde que foi promovida lidera uma nova expansão fabril no país, parte de um investimento de R$ 150 milhões, considerado o maior da companhia americana no Brasil, nos últimos dez anos.
Na gigante de produtos químicos Dow, o argentino Javier Constante, presidente da marca na América Latina e Brasil, também passou por desafio semelhante. Em 2019, ocupou o lugar do hoje investidor Fabian Gil, que se aposentou após 27 anos de companhia, sendo três na presidência.
“Foi uma transição relativamente breve”, minimiza Constante, que era vice-presidente comercial para embalagens e plásticos especiais na Europa, Oriente Médio e África, baseado na Suíça. “Além dos compromissos relacionados à posição, tive de realizar a passagem de cargo para o colega que ia me substituir.”
Constante diz acreditar que, mais relevante do que o rito da sucessão, é fazer que a organização siga funcionando normalmente durante a “recarga” do posto máximo. “O período envolve toda uma cadeia de transição, com alguma complexidade, porque muitos dos movimentos [executivos] acontecem em sequência”, diz o gestor, que ocupou posições de liderança na França, Itália e Espanha.
No caso dele, o passe foi ainda mais desafiador porque, com poucos meses de crachá novo, viu o mundo entrar no período pandêmico. “Precisei construir todos os relacionamentos [profissionais] de forma virtual”, afirma ele, que hoje despacha em São Paulo.
Corporações que precisam fazer alterações estratégicas podem ter experiências “mais leves” se tiverem unidades bem estruturadas ou dinâmicas de trabalho claras, defende o presidente da Dow. Na prática, é como se a empresa “andasse sozinha” durante a reposição gerencial. O novo gestor vai imprimir muito mais do seu estilo de direção, enquanto as áreas operacionais continuarão atuando, durante o intercâmbio de lideranças, explica. “A sucessão não termina quando o novo CEO assume”, alerta Leão, da Russell Reynolds. “É fundamental que exista um plano de transição para que o executivo receba apoio no primeiro ano de gestão, a fim de reduzir riscos de insucesso e maximizar resultados.” No roteiro da HBO, por exemplo – sem dar spoilers – tudo indica que o escolhido vai precisar de muito mais que 12 meses de aconselhamento corporativo.
Fonte: VALOR ECONÔMICO