RESUMO: O presente artigo aborda os pontos positivos e negativos trazidos pelo Acordo de Não Persecução Penal, inovação processual penal oriunda da Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime), sob os aspectos técnicos (dogmáticos) e sociológicos envolvidos, para demonstrar a sua aplicabilidade nos crimes tributários, considerando-se suas peculiaridades, e realizar críticas construtivas no âmbito da produção acadêmica de ciências criminais.
PALAVRAS-CHAVE: Justiça Consensual; Crimes Tributários; Pacote Anticrime.
ABSTRACT: This article addresses the positive and negative points brought about by the Non-Persuit Agreement, a criminal procedural innovation arising from Law nº 13.964/2019 (Anti-Crime Law), under the technical (dogmatic) and sociological aspects involved, to demonstrate its applicability in tax crimes, considering its peculiarities, and to carry out constructive criticism in the academic production of criminal sciences.
KEYWORDS: Consensual Justice; Tax Crimes; “Anti-crime” Package.
INTRODUÇÃO
Dentre as principais novidades introduzidas no Direito Penal brasileiro pela Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime), destacou-se de forma polêmica o Acordo de Não Persecução Penal, inserido no artigo 28-A do Código de Processo Penal.
Inobstante sua recém-criação, a inovação trazida pela proposta do Ministério da Justiça e da Segurança Pública já foi alvo de elogios e críticas pontuais.
No entanto, por se tratar de um novo instituto ainda carente de suporte jurisprudencial e de meta-regras práticas, é necessária sua detalhada análise, a fim de compreender seu alcance, seus limites, seus atributos técnicos, seus efeitos socio-criminológicos e as consequências que trará para a prática judicial.
O instituto jurídico-penal norte-americano denominado “plea bargaining” (ou “plea negotiation”), serviu como modelo para essa nova ferramenta processual no Brasil, cuja essência é a constituição de medida político-criminal despenalizadora e a promoção de maior celeridade e agilidade nos procedimentos penais em crimes de menor gravidade e reprovabilidade.
Dentre as classes de tipos penais que se enquadram nessa lógica e nos requisitos dispostos pelo legislador, há os crimes contra a ordem tributária, previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, visto que a pena mínima para ambos os dispositivos é inferior ou igual a 2 anos e não há violência ou grave ameaça envolvidos.
Posto isso, exsurgem certas peculiaridades próprias dos crimes tributários que os diferenciam da regra geral do Acordo de Não Persecução Penal, principalmente no que tange a obrigatoriedade de reparação do dano, ponto que encontra óbice no artigo 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/2003 e no entendimento jurisprudencial sedimentado pelos tribunais superiores, nos quais se prevê a extinção da punibilidade como consequência direta do pagamento integral “dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”.
O presente artigo se apresenta como contribuição propositiva de resolução de parte dos problemas, principalmente no âmbito dos tipos penais que violam o bem jurídico da ordem tributária, e indicação de possíveis caminhos a serem seguidos para integração harmônica e coerente do referido instituto em nosso ordenamento jurídico.
1 CONTEXTO HISTÓRICO E LEI ANTICRIME
A luta contra a criminalidade no Brasil e no mundo nunca foi tão intensa quanto na atualidade. O fenômeno da expansão do Direito Penal e dos mecanismos do sistema penal vem se desenhando nos países ocidentais em decorrência de diversas causas, como a sensação social de insegurança e a constante demanda social por mais crimes e mais penas como solução dos problemas (SANCHEZ, 2013, p. 46-50), o que fortalece o populismo penal.
Os focos dessa nova faceta da política criminal são a criminalidade organizada e os crimes contra a ordem econômica, dentre os quais se destacam a lavagem de dinheiro, a corrupção, os crimes concorrenciais e os crimes tributários.
Diante deste cenário, o Brasil, através da ratificação da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção (ONU), da Convenção Interamericana de Combate à Corrupção (OEA) e da Convenção sobre o combate da corrupção de funcionários públicos estrangeiros da OCDE, assumiu o compromisso de adoção de medidas para o combate interno e internacional à corrupção.
Desde a Ação Penal 470 do Supremo Tribunal Federal (“Mensalão”), culminando com a “Operação Lava-Jato”, o espírito de recrudescimento penal vem crescendo, alcançando agentes políticos e grandes empresas e seus dirigentes.
No mesmo período, foram criados novos instrumentos normativos, como a Lei nº 12.846/13 (“Lei Anticorrupção”) e a Lei nº 12.850/13 (“Lei de organizações criminosas”). Outros foram propostos, mas ainda estão em tramitação nas casas legislativas, como o Projeto de Lei nº 4.850/2016 (“10 medidas de combate à corrupção”), que se transformou no PL 3.855/2019, fruto de grande oposição no campo jurídico.
Foi dentro dessa linha normativa que a Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”), foi promulgada (24 de dezembro de 2019), entrando em vigor no dia 23 de janeiro de 2020.
Apesar de sua origem ter se dado no Projeto de Lei nº 10.372/2018, proposto na Câmara dos Deputados em 10 de outubro de 2017, o maior responsável por levar adiante a aprovação deste instrumento normativo foi Sérgio Moro, que, na função de Ministro da Justiça e da Segurança Pública, tratou o projeto como sua principal proposta e missão inicial.
Dentro de uma lógica de populismo penal, Sérgio Moro realizou intensa campanha de projeção da nova lei, sob o slogan “Pacote Anticrime. A lei tem que estar acima da impunidade”, como expressão de sua anterior atuação na Operação Lava-Jato e em resposta às demandas por um aparato mais completo de combate à corrupção, advindas da Polícia Judiciária, do Ministério Público e do Poder Judiciário.
A rubrica desta nova lei foi o aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal, introduzindo uma série de novidades, como o juiz de garantias e o artigo 28-A do Código de Processo Penal, que disciplina o Acordo de Não-Persecução Penal-ANPP, com esta redação:
Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: […] (BRASIL, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941).
Não obstante seja recente, já é um instrumento processual penal que vem sendo largamente utilizado: até 16.03.2020 já haviam sido firmados 2.230 acordos de não persecução penal pelo MPF, dentre os quais 776 foram fechados já no curso da ação penal (MPF, 2020).
Embora a lei restrinja a proposição apenas a investigados, adverte-se a possibilidade de sua realização em processos criminais iniciados, na restrita hipótese dos procedimentos cuja denúncia tenha sido oferecida antes do início da vigência da Lei nº 13.964 (Lei Anticrime) (dia 23.01.2020), em virtude do princípio jurídico-penal constitucional da retroatividade para beneficiar o agente:
Ao criar uma causa extintiva da punibilidade (art. 28-A, § 13, CPP), o ANPP adquiriu natureza mista de norma processual e norma penal, devendo retroagir para beneficiar o agente (art. 5º, XL, CF) já que é algo mais benéfico do que uma possível condenação criminal. Deve, pois, aplicar-se a todos os processos em curso, ainda não sentenciados até a entrada em vigor da lei (LOPES JUNIOR JOSITA, 2020).
2 ATRIBUTOS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Diante desse quadro sócio-histórico específico em que se insere a Lei nº 13.964/2019 e a criação do Acordo de Não Persecução Penal e de suas perspectivas de aplicação nos crimes contra a ordem tributária, faz-se crucial a correta compreensão jurídica e sociológica desta nova figura processual penal, a partir de seus aspectos técnicos e de uma análise crítica dos pontos positivos e negativos que representa.
2.1 CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS
O Acordo de Não Persecução Penal possui natureza jurídica híbrida: constitui-se como negócio jurídico pré-processual, instrumento à disposição do Ministério Público (norma processual) para solucionar conflitos penais de menor gravidade, de forma menos rígida e mais rápida; mas também caracteriza efeitos penais, porque tem o condão de gerar a extinção de punibilidade (norma penal).
Frise-se que não se trata de direito subjetivo do agente, mas de faculdade da acusação nos casos em que a promotoria ou procuradoria considere adequada e recomendável a celebração do acordo, com base no exame de suficiência para as funções penais de reprovação e prevenção, conforme entendimento do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG).
Os seus requisitos são claros e expressos no texto legal: não ser cabível arquivamento da investigação; confissão formal e circunstanciada; crime sem violência ou grave ameaça; e pena mínima aplicável inferior a 4 anos (considerando as causas de aumento e diminuição).
A confissão exigida deve ser simples e sem necessidade de ser detalhada, a fim de evitar que seja usada em desfavor do investigado, porque:
[…] apesar de pressupor sua confissão, não há reconhecimento expresso de culpa pelo investigado. Há, se tanto, uma admissão implícita de culpa, de índole puramente moral, sem repercussão jurídica. A culpa, para ser efetivamente reconhecida, demanda o devido processo legal (grifo nosso) (CUNHA, 2020, p. 119).
Com relação aos delitos violentos, o Enunciado 23 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) prevê exceção para a modalidade culposa:
É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível (grifo nosso).
Além destes requisitos, o § 2º do artigo 28-A do Código de Processo Penal prevê restrições absolutas: I – não pode ser cabível transação penal (mais benéfica ao agente); II – não se tratar de reincidente ou conduta criminal habitual, reiterada ou profissional; III – não houver sido o indivíduo beneficiado nos últimos 5 anos por acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e IV – não abrange os crimes previstos na Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha) (BRASIL, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941).
Depois de preenchidas todas as exigências legais, deve-se realizar os procedimentos determinados pelo legislador no artigo 28-A do Código de Processo Penal.
O primeiro passo é a formalização por escrito, com assinatura do membro do Ministério Público, do investigado e de seu defensor (§ 3º). Após isso, o negócio jurídico será submetido à apreciação judicial para a homologação: há audiência para verificar a voluntariedade do agente (§ 4º) e a análise do juiz competente sobre a adequação das condições estabelecidas na proposta ministerial e o preenchimento dos requisitos (§§ 5º e 7º).
Em caso de recusa da homologação, o órgão acusatório deverá requerer novas diligências ou oferecer denúncia (§ 8º).
Se for homologado o acordo, os autos serão remetidos ao Ministério Público para iniciar o cumprimento das condições, junto ao juízo de execução penal (§ 6º), devendo a vítima ser intimada da homologação do acordo e do descumprimento de qualquer condição (§ 9º), hipótese em que o Ministério Público comunicará ao Juízo para fins de rescisão e deverá oferecer a denúncia (§ 10).
No entanto, se o beneficiado respeitar as determinações e cumprir todas as condições, terá sua punibilidade extinta por decisão judicial e nada constará em sua certidão de antecedentes criminais (§§ 12 e 13).
Vale ressaltar a interessante previsão de que, se houver recusa do promotor ou procurador quanto ao oferecimento do benefício, o sujeito prejudicado poderá requerer a remessa dos autos para análise do Procurador (§ 14), conforme o procedimento do artigo 28 do Código de Processo Penal, o que esbarra na polêmica sobre este ser ou não um direito subjetivo do investigado. Porém a resposta deverá ser negativa, porque, ainda nesse caso, a competência para verificar o cabimento da proposta é da Procuradoria-Geral, pertencente ao Ministério Público. O juiz não poderá, em nenhuma hipótese, determinar a realização da negociação “de ofício”.
Por fim, as condições a serem cumpridas estão expressamente dispostas em lei: I – a reparação do dano, exceto se impossível; II – renúncia a bens e direitos apontados como “instrumentos, produto ou proveito do crime”; III – a prestação de serviços à comunidade; IV – o pagamento de prestação pecuniária; e V – condição extra indicada pelo Ministério Público “desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada” (artigo 28-A do Código de Processo Penal) (BRASIL, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941).
No entanto, há certas lacunas deixadas pelo texto legal com relação à questão das condições a serem cumpridas, as quais deverão ser preenchidas e corrigidas pela interpretação sistemática e teleológica.
2.2 A POLÊMICA PREVISÃO “CUMULATIVA E ALTERNATIVAMENTE” E A CONDIÇÃO EXTRA
A amplitude gerada pela previsão do caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal de que as condições taxativamente previstas poderão ser impostas “cumulativa e alternativamente” reveste-se de aparente contradição.
A solução adequada para essa falha linguística deve ser a lógica separação entre as quatro primeiras condições, de caráter obrigatório, e a última, facultativa:
Pela redação legal, deve-se considerar como obrigatórias, aplicadas cumulativamente, as quatro primeiras condições, salvo a impossibilidade de adimplemento como, por exemplo, a falta de recursos do investigado para reparar o dano ou para pagar a prestação pecuniária, ou a inexistência de instrumentos, produto ou proveito do crime. ‘Alternativamente’, poderá ser também estabelecida a quinta condição, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada (MOREIRA, 2020).
Já com relação à “livre” indicação facultada ao Ministério Público, há equivocada exceção à taxatividade inerente ao supracitado artigo, em que o encargo a ser imposto ao sujeito alvo das investigações ficará condicionado ao critério discricionário do órgão acusatório, principalmente porque o controle judicial indicado no mesmo texto legal releva indícios de que será feito conforme parâmetros relativamente abstratos.
Bastará, desta forma, uma arbitrária justificação de que esta condição é “proporcional e compatível com a infração penal imputada” (artigo 28-A, inciso V, do Código de Processo Penal) (BRASIL, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941), exigência de enorme indeterminação linguística: nada define objetivamente a proporcionalidade e a compatibilidade acima mencionada, restando aos operadores do Direito a função de construir a interpretação e o raciocínio para conferir-lhe sentido.
É exatamente nesse ponto que se concentra o maior perigo, posto que não há entendimento consensual (longe disso!), tanto na doutrina quanto na jurisprudência e na prática dos agentes do Sistema de Justiça Criminal em geral, os quais agem de acordo com meta-regras por eles criadas. O que resulta em quadro de pragmatismo generalizado em matéria criminal: a prática orienta a teoria; não o contrário.
Uma possível solução a esta questão é a determinação de critérios mais objetivos para limitar a abrangência do subjetivismo ministerial, o que pode ser feito através de alteração legal ou, até mesmo, por meio de formulações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) específicas a disciplinar este novo instituto.
2.3 ASPECTOS POSITIVOS
A partir de uma perspectiva mais ampla, é possível verificar que este novo instrumento negocial trazido pelo Pacote Anticrime foi alvo de elogios e críticas.
Os três principais pontos positivos são o seu caráter despenalizador, a maior eficiência que pode propiciar ao Sistema de Justiça Criminal brasileiro e a valorização da vítima.
A configuração de uma nova alternativa à pena de privação de liberdade agrada aos defensores de um “Direito Penal mínimo”, que restringe a prisão a casos excepcionais.
Esta é a preocupação criminológica no contexto atual de “superencarceramento”, em que a política criminal de desencarceramento em infrações penais menos reprováveis traz óbvios benefícios sociais, o que se coaduna perfeitamente com os princípios jurídico-penais de subsidiariedade e intervenção mínima.
Com isso em vista, a novidade ora tratada merece incontáveis aplausos, porque afasta o enorme e grave peso que o cárcere e o processo penal causam sobre o indivíduo que se submete a estes, constituindo-se como alternativa ao excepcional procedimento criminal.
Já em outro aspecto, diante do problema da enorme carga de trabalho do Poder Judiciário, do Ministério Público e da própria polícia judiciária, insere-se a ideia de celeridade e eficiência nos procedimentos penais. Esta foi a perspectiva trazida pelo Procurador da República Fernando Rocha: “É um excelente instrumento de solução rápida do processo penal, deixando na Justiça somente os casos de maior relevância, como de corrupção, grandes roubos, tráfico, crimes hediondos” (MPF, 2019).
Por fim, outro fator benéfico que se atribui ao Acordo de Não Persecução Penal é a maior valorização da vítima no processo penal, através da possibilidade de reparação do dano:
Uma das finalidades do acordo de não persecução penal, além de garantir uma maior celeridade, eficiência e economia processual, tem o condão de reparação do dano à vítima, ao passo que uma das condições para a propositura do acordo é a de reparação à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo (MOREIRA, 2020).
Nesse mesmo sentido:
[…] o primeiro requisito para a celebração do Acordo de Não Persecução Penal é a necessidade imperiosa de reparação de danos sofridos o que atende seus interesses imediatos e à moderna tendência criminológica de revalorização da vítima no processo penal (CUNHA, 2018).
2.4 PRINCIPAIS CRÍTICAS
Na direção oposta, críticas pontuais precisam ser tecidas.
A excessiva liberdade de promotores e procuradores para dispor sobre as condições do acordo, como se verifica na confusa passagem “cumulativa e alternativamente” e na possibilidade de indicação de uma condição extra cuja arbitrariedade já foi demonstrada, é fator de preocupação
Essa questão se agrava, principalmente, quando examinamos a situação dos EUA, país modelo de onde o Brasil importou o Acordo de Não Persecução Penal, conforme já afirmado pelo ex-Ministro Sérgio Moro (G1, 2019).
Sob uma análise criminológica do sistema penal norte-americano, percebe-se a influência negativa da justiça negocial e consensual em razão da atuação dos prosecutors, que submetem os investigados e acusados a verdadeira coação psicológica, de forma a induzir à confissão, instigando-os a abrirem mão das garantias constitucionais ao direito de ser julgado para alcançarem a atenuação da sanção penal (ou a sua não agravação):
[…] nós coagimos o acusado contra quem encontramos uma causa provável a confessar a sua culpa. Para ter certeza, nossos meios são muito mais elegantes; não usamos rodas, parafusos de polegar, botas espanholas para esmagar as suas pernas. Mas como os europeus de séculos atrás, que empregavam essas máquinas, nós fazemos o acusado pagar caro pelo seu direito à garantia constitucional do direito a um julgamento. Nós o tratamos com uma sanção substancialmente aumentada se ele se beneficia de seu direito e é posteriormente condenado. Este diferencial da sentença é o que torna o plea bargaining coercitivo. Há, claro, uma diferença entre ter os seus membros esmagados ou sofrer alguns anos a mais de prisão se você se recusar a confessar, mas a diferença é de grau, não de espécie. O plea bargaining, assim como a tortura, é coercitivo (grifo original) (GLOECKNER, 2017, p. 141).
Ademais, é gritante a quantidade de erros judiciários cometidos pelos norte-americanos em matéria criminal, o que é causado por uma série de fatores, dentre os quais a atuação abusiva da instituição acusatória no uso indiscriminado da justiça negocial[3].
Saul Kassin, professor de psicologia no John Jay College of Criminal Justice (Nova York) e no Williams College (Massachusetts), realizou importante pesquisa em que constatou a influência das negociações do plea bargaining como fator impulsionador de falsas confissões, em função da pressão psicológica realizada (KASSIN, 2008, p. 249-253).
É necessário rever o ideal de justiça penal que o nosso país vem utilizando como modelo, visto que o sistema adotado pelos EUA é reconhecido por ostentar a maior população carcerária do mundo e altos índices de abuso por parte dos agentes de criminalização (policiais, acusação e Poder Judiciário), gerando, consequente, maior recorrência nos erros judiciários.
Nesse sentido, Luis Henrique Machado, doutorando em processo penal pela Universidade Humboldt de Berlim, em entrevista à Revista Consultor Jurídico, aponta para o equívoco político-criminal brasileiro com essas “inovações”:
Basta lembrar que os EUA possuem 2,3 milhões de presos, a maior população carcerária do planeta, formada na sua grande maioria por negros e pobres. Nesse mesmo país, crianças cumprem prisão perpétua e a pena de morte ainda está em vigor em alguns estados da federação. Importante lembrar que aproximadamente 95% dos casos criminais são encerrados via plea bargain, onde há inúmeras queixas de condenados que acusam o órgão investigatório de coação para entabular o acordo. Estamos, infelizmente, importando o que há de pior dos EUA (grifo nosso) (POMPEU, 2019).
Outro alvo de objeção é a ideia de eficiência, supostamente vantajosa, associada à flexibilização e aceleração dos procedimentos criminais. O grande problema disso é a subversão de garantias e direitos fundamentais em função de uma pretensa eficiência, baseada na equivocada concepção do gerencialismo penal:
De fato, no que tange ao fenômeno das infrações de maior complexidade, há dois modelos de acordo que convivem na atual práxis forense. Neste particular aspecto, as propostas contidas no cognominado Projeto Anticrime não colocam fim aos inúmeros problemas dos modelos de negócios jurídicos bilaterais em matéria penal, que têm por objeto a contraposição entre o poder-dever de punir do Estado e o direito de liberdade do cidadão ao qual é imputado um crime. A colaboração premiada rompeu com dois princípios fundamentais, um do Direito Penal e outro do Direito Instrumental. Desfez-se o princípio da legalidade ao impor novas espécies de penas criminais, desde que justamente acordadas e, posteriormente, homologadas por um juiz. Além disto, findou a aplicação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, mitigado desde a Lei 9.099/95, fazendo prevalecer a análise da conveniência, em face da colaboração com a Justiça, de se propor a ação penal (REALE JR.; WUNDERLICH).
Como o acordo já está em vigor e amplamente difundido no Ministério Público, o caminho será regular de forma mais coerente as suas regras e orientar seus requisitos de modo a reduzir a trágica população carcerária nacional, que se encaminha para um progressivo crescimento, conforme o ritmo atual.
Dentre as principais classes de delitos a serem abarcadas, temos os crimes contra a ordem tributária, segmentação do Direito Penal Econômico, os quais passaremos a analisar.
3APLICABILIDADE DO INSTITUTO AOS CRIMES TRIBUTÁRIOS
A referência a “crimes tributários” ou “crimes contra a ordem tributária” abrange as figuras tipificadas pelos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, que preveem diversas condutas. Devido a esta variedade, é necessária a compreensão de suas especificidades, principalmente com relação à exigência de resultado: redução ou supressão do tributo.
Há entendimento pacífico, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, no sentido de classificar os crimes previstos no artigo 1º como materiais, em que a sua consumação depende da consecução de determinado efeito: “A consumação do crime do art. 1º, em todas as modalidades elencadas nos respectivos incisos somente ocorre com o advento do resultado descrito no tipo, isto é, com a efetiva supressão ou redução de tributo ou acessório”. (BITENCOURT, 2013, p. 149).
Com relação a esse aspecto, a súmula vinculante nº 24 do STF limitou o entendimento para as condutas descritas nos incisos I a IV ao definir o lançamento definitivo do tributo pelo Fisco como o critério para determinar a consumação do delito (STF, SÚMULA VINCULANTE Nº 24).
Com isso, ficaram excluídos os crimes previstos no inciso V e no parágrafo único do mesmo artigo, contrariando o precedente representativo e a jurisprudência selecionada para fundamentar a criação da súmula.
Resta equivocada a exceção feita ao inciso V, já que “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente” ou “fornecê-la em desacordo com a legislação” (espelhamento de nota ou subfaturamento) são condutas que, indiscutivelmente, levam à supressão ou redução de tributo, que será apurada em procedimento fiscal e formalizada em lançamento de ofício pelo Fisco sujeito ao contraditório e à ampla defesa.
Já a conduta prescrita pelo parágrafo único é autônoma em relação ao “caput”, porque a sua realização independe de supressão ou redução do tributo. Este crime se perfaz com o simples desatendimento da exigência da autoridade fiscal dentro do prazo fixado, tratando-se de crime formal, que deverá ser analisado juntamente com tipos penais do artigo 2º da Lei nº 8.137/90, que prevê apenas infrações que se consumam independentemente do resultado.
Esta distinção é importante porque contribui decisivamente para a análise da aplicabilidade do instituto do Acordo de Não Persecução Penal, tendo-se em vista que é mais vantajosa, nos crimes materiais, a opção pelo pagamento do tributo reduzido ou suprimido, o qual, como será visto, acarreta a imediata extinção da punibilidade, sem outras condições.
Já nos tipos penais de “mera conduta”, não há esta mesma possibilidade, o que é contraditório, diante da maior rigidez conferida a crimes menos graves, visto que geram menor lesão e perigo aos bens jurídicos.
Portanto, é necessário esclarecer a forma de integração entre o Acordo de Não Persecução Penal e os crimes tributários, como as categorias tributárias relevantes, o seu enquadramento nos requisitos legais do instituto e as peculiaridades existentes, dentre as quais a não obrigatoriedade da reparação do dano.
3.1 QUESTÕES PRÓPRIAS DA DOGMÁTICA DO DIREITO TRIBUTÁRIO
A interação do Direito Tributário com o Direito Penal traz particularidades relevantes.
O Código Tributário Nacional atribuiu competência privativa às autoridades administrativas para a interpretação e aplicação das normas de Direito Tributário, nos termos de seu artigo 142.
O mesmo dispositivo prevê que o lançamento é o mecanismo de apuração do crédito tributário e deve ser feito apenas pelas autoridades administrativas definidas por lei, o que leva à conclusão de que somente haverá crédito tributário se apurado pelo Fisco.
A apuração passa, inicialmente, pela etapa de identificação da obrigação tributária. O artigo 113 do Código Tributário Nacional classifica em duas categorias: obrigações tributárias principais e obrigações tributárias acessórias.
Vale lembrar que, apesar da denominação “acessórias”, estas últimas não dependem da obrigação principal, diferentemente do que ocorre no Direito Civil. Na verdade, elas representam o feixe de deveres a que estão sujeitas as pessoas eleitas como sujeitos passivos, fazendo com que a sua nomenclatura adequada seja “deveres instrumentais”, posto que o conceito civilista de “obrigação” pressupõe caráter pecuniário, o qual não existe nesse caso (CARVALHO, 2019, p. 374-380).
Esta diferenciação conduz à separação também das penalidades impostas pelo descumprimento de cada uma das classes de obrigação.
O descumprimento da chamada obrigação tributária principal gera o crédito tributário tradicional, composto por tributo, multa pecuniária e juros moratórios.
Já o descumprimento de deveres instrumentais é sancionado apenas com multa pecuniária e juros moratórios.
Portanto a “redução ou supressão de tributos” se relaciona com a violação de obrigação tributária principal, aplicável aos tipos penais do artigo 1º da Lei 8.137/90.
A única exceção ocorre em seu parágrafo único, porque este tipifica uma “obrigação acessória”, voltada para o sujeito passivo que descumpre exigência da autoridade fiscal.
Já as condutas tipificadas pelo artigo 2º são condutas que configuram descumprimento de deveres instrumentais, mediante ação ou omissão. Nesses casos, a consumação não exige a efetiva redução ou supressão de tributo.
Adentrando a especificidade da conduta tipificada pelo inciso I do artigo 2º, verifica-se maior complexidade, se comparada às mesmas tipificações dos incisos I e II do artigo 1º. A diferença consiste no critério de consumação: enquanto estas últimas exigem a redução ou supressão do tributo, a previsão do inciso I do artigo 2º não exige a falta de pagamento, bastando a intenção de eximir-se para configurar o crime.
Verifica-se, assim, que a classificação realizada pelo Código Tributário Nacional se coaduna com a lógica da Lei nº 8.137/90, de modo que no artigo 2º ficaram contempladas condutas de menor relevância, as infrações fiscais regulamentares, penalizadas de maneira mais branda exatamente porque não caracterizam dano efetivo aos cofres públicos.
No entanto, esta distinção não significa que se deve dispensar tratamento mais prejudicial aos tipos penais do artigo 2º. Se o pagamento do crédito tributário constituído implica a extinção da punibilidade nas condutas do artigo 1º, isso deve valer também para o artigo 2º, em que a realização tardia do dever instrumental teria o mesmo efeito.
Do mesmo modo, o lançamento definitivo na esfera administrativa deveria ser condição de procedibilidade para as figuras do artigo 1º e 2º, tendo-se em vista a competência privativa da autoridade administrativa para interpretar e aplicar a legislação tributária.
Sabe-se que se a Administração afirmar que não é devido o tributo que se presumiu suprimido ou reduzido, não há como existir ação penal, não pertence ao Ministério Público, muito menos ao Juiz Criminal, a competência para constituir o crédito tributário.
A infração ao dever instrumental deverá ser examinada, de igual forma, pela Administração Pública, em decorrência das mesmas razões. Admitir o contrário conduz à ilógica condenação por “crime contra a ordem tributária” à míngua de qualquer ato reconhecido pelas próprias autoridades fiscais como contrários à sua ordem.
Outra particularidade a ser considerada é o bem jurídico tutelado, questão que está longe de consenso na doutrina e na jurisprudência, motivo pelo qual o presente artigo esboça a perspectiva de seus autores.
Como o Direito Penal não pode ser instrumento de coação para alavancar a arrecadação, tanto os crimes do artigo 1º quanto aqueles do artigo 2º da Lei nº 8.137/90 não ferem o Erário ou os cofres públicos, porque se configuraria sanção política ao não pagamento do tributo, o que é desconforme à jurisprudência unânime do Supremo Tribunal Federal, como se verifica nos seguintes julgamentos: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.135, DJe 07.02.18; Agravo em Recurso Especial nº 914.045 RG, DJe 19.11.15; Recurso Especial nº 565.048, DJe 09.10.14; e outros.
Diante do exposto, rejeitamos uma definição patrimonialista[4] do objeto de tutela, em que se protegem valores relativos ao aspecto financeiro dos danos gerados à Administração Pública, o que incorre no grave equívoco de interferir em matéria própria do Direito Tributário e do Direito Administrativo.
Optamos, assim, por defender que o bem jurídico protegido é a Ordem Tributária, concebida como a manutenção da ordem jurídica e da boa fé pública, o que se encontra violado quando o indivíduo utiliza artifícios fraudulentos para induzir as autoridades ao erro.
3.2 PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS
Definidas estas questões iniciais, passa-se a explicar como ocorre a relação entre os crimes dos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 e as exigências do artigo 28-A do Código de Processo Penal.
A essência dos crimes contra a ordem tributária não abrange violência ou grave ameaça, o que já satisfaz o primeiro requisito do “caput” do dispositivo processual acima mencionado. Além disso, as penas mínimas previstas pelos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 são, respectivamente, 2 anos e 6 meses, preenchendo a exigência de “pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”.
Assim, desde que, no caso concreto, haja confissão formal e circunstanciada por parte do sujeito alvo do Inquérito Policial ou processo criminal e não seja cabível o arquivamento do primeiro, será permitida o oferecimento e a celebração do acordo.
No entanto, deve-se atentar às vedações absolutas do § 2º do artigo 28-A do Código de Processo Penal: não poderá caber transação penal (artigo 76 da Lei nº 9.099/95), o que exclui, a princípio, os tipos penais do artigo 2º da Lei nº 8.137/90, cuja pena máxima em abstrato não é superior a 2 anos, satisfazendo-se o requisito do artigo 61 da Lei nº 9.099/95 para caracterizar infração de menor potencial ofensivo. Somente será permitido o acordo, nesses casos, se existir alguma das restrições do § 2º do artigo 76 da mesma lei.
Além disso, outro impedimento a ser verificado no caso concreto ocorre na situação em que o agente tiver se beneficiado “nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo” (artigo 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal), o que desqualifica a possibilidade da proposta ainda que se enquadre nos requisitos gerais do “caput”.
3.3 EXCEÇÃO À OBRIGATORIEDADE DE REPARAÇÃO DO DANO
Superados os requisitos acima alinhados, resta analisarmos a não obrigatoriedade de reparação do dano, condição a princípio compulsória (art. 28-A, I, do Código de Processo Penal), nos casos de crimes contra a ordem tributária, visto que o adimplemento da obrigação extingue, por si só, a punibilidade do autor, de acordo com o artigo 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/2003:
Art. 9º. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
[…]
§ 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios (grifo nosso) (BRASIL, LEI Nº 10.684, 2003).
O aspecto central dessa dicotomia normativa reside na busca do caráter mais benéfico ao réu ou investigado, princípio básico do sistema jurídico-penal brasileiro. Desta forma, é imperioso notar que, apesar de ambos os preceitos normativos (Acordo de Não Persecução Penal e adimplemento) levarem ao mesmo resultado (extinção de punibilidade), a situação mais vantajosa seria apenas pagar o tributo devido, sem ter que arcar com obrigações adicionais, como a prestação de serviços comunitários e prestação pecuniária (previstos no artigo 28-A do Código de Processo Penal).
Essa visão se assenta no amplo entendimento jurisprudencial sobre o tema, à luz da seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:
Com o advento da Lei 10.684/2003, no exercício da sua função constitucional e de acordo com a política criminal adotada, o legislador ordinário optou por retirar do ordenamento jurídico o marco temporal previsto para o adimplemento do débito tributário redundar na extinção da punibilidade do agente sonegador, nos termos do seu artigo 9º, § 2º, sendo vedado ao Poder Judiciário estabelecer tal limite. Não há como se interpretar o referido dispositivo legal de outro modo, senão considerando que o pagamento do tributo, a qualquer tempo, até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é causa de extinção da punibilidade do acusado (grifo nosso) (STJ, HABEAS CORPUS Nº 362.478/SP, DJe 20/09/2017).
Apesar de ainda não pacificada a interpretação mais adequada à aplicabilidade do Acordo de Não Persecução Penal nos crimes contra a ordem tributária em relação à reparação do dano, certo é que deverá prevalecer a condição mais favorável ao investigado ou acusado, analisando-se sempre as particularidades do caso concreto.
CONCLUSÃO
Há uma série de conclusões possíveis, positivas e negativas, acerca do Acordo de Não Persecução Penal, a partir de diferentes perspectivas, o que foi analisado e, quando necessário, criticado de forma contundente, a fim de formular uma proposição científica relevante e útil, principalmente se considerado o atual contexto brasileiro no âmbito político-criminal.
Desta forma, o instituto traz, de um lado, a ideia da lógica de efetividade e rapidez na prestação jurisdicional, de modo a garantir a aplicação do princípio constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da Constituição Brasileira).
É um fenômeno que já se manifesta no Brasil desde a promulgação da Lei nº 9.099, em 1995, que trouxe diversos institutos de cunho similar, como a transação penal (art. 76), a suspensão condicional do processo (art. 89) e a composição civil de danos (arts. 72 a 75).
Em outra toada, há nocividade às garantias constitucionais dos cidadãos deste Estado Democrático de Direito na atuação dos operadores do Direito em face de mudanças legislativas como esta, que costuma ocasionar a mitigação de direitos tidos como fundamentais pelo Direito Penal brasileiro, de base nuclear e clássica.
Esse problema se verifica se tomado como exemplo o caso dos EUA, em que a justiça negocial é instrumentalizada por “prosecutors” como meio de tortura, coação psicológica e indução a celebrações de acordos por parte dos investigados, causando o aumento de erros judiciários, tudo em função de interesses opostos à lógica de um sistema garantista.
Diante dessa dicotomia, reitera-se o apelo por regulamentação e fiscalização adequadas da operacionalização desta importante ferramenta processual (ou pré-processual) a fim de evitar que culmine em consequências negativas não desejadas, o que pode ser operado por meio de atos normativos do Conselho Nacional de Justiça e da regulamentação interna dos próprios tribunais, assim como por um controle de legalidade mais rígido no Inquérito Policial e nas investigações criminais em geral, as quais, em regra, são submetidas a uma atuação contida do Juiz Criminal no sentido de preservar direitos e garantias fundamentais.
Por fim, não se pode ignorar os necessários ajustes técnicos em certos pontos específicos do artigo 28-A do Código de Processo Penal, como o grau de profundidade da confissão exigida, a indeterminação da condição de livre disposição do Ministério Público, o contraditório termo “cumulativamente e alternativamente”, a sua imediata aplicação a processos já em andamento, os mecanismos capazes de evitar a instrumentalização do acordo como meio de coação e outras questões delicadas, de modo a englobar harmonicamente este instituto inovador no ordenamento jurídico brasileiro.
Essas importantes intervenções podem e devem ser feitas através da adequada interpretação sistemática e garantista, bem como por meio da produção acadêmica, cuja inestimável função social se aclara, principalmente, em temas delicados do âmbito das ciências penais, processuais penais e criminológicas.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UNIMAR/SP. Advogado atuante nas áreas de Direito Empresarial e Direito Tributário.
[2] Doutorando e Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Advogado atuante na área de Direito Penal.
[3] O tema é tão importante que a indústria cinematográfica e de streaming vem abordando-o reiteradamente, como se verifica na série de TV americana “When They See Us” (2019), em que se demonstra a flagrante injustiça cometida contra cinco negros erroneamente vinculados a um crime violento no Central Park.
[4] Esta concepção, no entanto, é partilhada por diversos autores, como Cezar Roberto Bitencourt em sua obra “Crimes Contra a Ordem Tributária”.