Este ano, a Alemanha saiu na dianteira mundial ao colocar em vigor uma nova legislação que obriga as empresas a fazer um ‘scanner’ do cumprimento dos direitos humanos – a chamada due diligence (devida diligência em português) dos direitos humanos – em suas cadeias de fornecedores. O German Supply Chain Act antecedeu a própria legislação da União Europeia sobre o assunto, que começa a valer agora em outubro. No Brasil, o projeto de lei (nº 572/2022) que visa criar o Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas está em andamento desde o ano passado na Câmara dos Deputados. Diante da pressão regulatória que vem por aí e do frenesi em torno da agenda de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e pautas ambientais, sociais e de governança (ESG), foi criada uma aliança brasileira para levar o tema de direitos humanos ao público corporativo.
A chamada Aliança pelos Direitos Humanos e Empresas foi lançada nesta quinta (26) em Brasília, na presença de lideranças empresariais, do poder público e de organismos multilaterais pelo Pacto Global da ONU no Brasil, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) – por meio do projeto de Conduta Empresarial Responsável na América Latina e Caribe (CERALC) -, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A ideia, simples porém complexa, é identificar oportunidades de avanço, lições aprendidas e compartilhar boas práticas nas áreas da devida diligência em Direitos Humanos. “O objetivo ao estabelecer a aliança é para que empresas e organizações que precisem trabalhar o tema saibam onde procurar informações, projetos setoriais, treinamentos de due diligence em direitos humanos e um grande guarda-chuva de soluções”, conta Carlo Pereira, CEO do Pacto Global da ONU no Brasil ao Prática ESG. “Nossa intenção é levar as discussões para outro patamar”, adiciona.
Como base das ações estão os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos no Brasil e outros documentos-chave como as Convenções da OIT sobre direitos trabalhistas e as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais sobre Conduta Empresarial, entre outros.
O executivo reitera que, apesar de o Brasil ter uma legislação trabalhista avançada em relação a muitos outros países e isso ser uma vantagem competitiva no comércio internacional quando for algo obrigatório, a due diligence de direitos humanos não se resume a observar o que a lei pede. “A pauta de direitos humanos é maior do que isso, tratando, por exemplo, de assédios em ambiente corporativo, relacionamento com comunidades, fornecedores e outros públicos externos, além do impacto no meio ambiente que, por sua vez, impacta as pessoas”, diz.
A consulta aos conteúdos e aplicação das boas práticas serão voluntárias, assim como a participação em eventos e cursos. O acesso é gratuito. Haverá conteúdo para empresas de diferentes portes, inclusive pequenas e médias, e que não necessariamente são associadas do Pacto Global da ONU.
A ideia é agregar, segundo Pereira, os esforços, materiais, projetos, ferramentas e soluções que as três entidades já possuem e, a partir de análise de dados, identificar quais as necessidades, especialmente com olhar setorial. Alguns setores já foram elencados para serem prioridades, como setor elétrico e energético, mercado financeiro, moda e têxtil, mineração de ouro e agricultura frutífera.
Tayná Leite, líder de Direitos Humanos e Trabalho do Pacto Global da ONU no Brasil e uma das coordenadoras da Aliança, explica que as ações estão divididas em três principais eixos: um hub de pesquisas, articulação de eventos e capacitação por meio de treinamentos. No primeiro caso, as entidades concentrarão em uma plataforma on-line estudos que tenham feito, assim como outras publicações que são referências no tema e novas pesquisas que vejam necessidade de realizar.
“A ideia é que este hub possa ser um grande farol para que empresas encontrem, de forma sistematizada e parametrizada, conteúdos de toda a temática”, diz. Inclusive, na plataforma, as companhias poderão fazer um teste de autodiagnóstico, que em poucos minutos aponta qual o nível de maturidade em direitos humanos e traz soluções para avançar. Também serão sugeridos cursos, pesquisas e outras ferramentas que podem ajudar a empresa na jornada e que já estejam disponíveis no site.
Na frente de articulação, Leite conta que o grupo quer estruturar um Fórum Brasileiro de Direitos Humanos e pleitear para que o Fórum Regional de Direitos Humanos seja no Brasil no ano que vem. Já em capacitação, a aliança se valerá de dados para entender quais conteúdos precisará desenvolver para treinamentos e ferramentas. “Vamos firmar parcerias com o governo para capacitar o poder público, como o Ministério Público Federal, por exemplo”, conta a executiva.
Um tema que será abordado é a reparação por violações de direitos humanos. Segundo Leite, já foi instalado um grupo de trabalho orientado para a questão, uma das mais complexas e polêmicas. “Reparação é muito difícil. Parece óbvio, mas não é”, diz Pereira, CEO do Pacto. Ele conta que mesmo os mecanismos já usados hoje no Brasil, principalmente acordos firmados com o ministério público, podem ser aperfeiçoados. “Contaremos inclusive com a ajuda do setor privado para criar mecanismos e ferramentas para reparação”, diz Leite, também do Pacto. Está em estudo também um instrumento de financiamento para projetos de reparação.
A estratégia do grupo será discutida em encontros do conselho consultivo, formado por representantes das organizações (Pacto Global, OIT, ACNUDH e OCDE), da sociedade civil e de organizações sociais, de empresas, de órgãos públicos e especialistas no assunto. A gestão em si será do Pacto.
A busca para financiar os projetos da aliança será focada, neste primeiro momento, em organismos multilateriais, bancos de fomento, fundos soberanos, bancos de desenvolvimento e setor público. “Além do lucro, eles têm em seu propósito, de alguma forma, fazer responsabilidade social e políticas públicas em prol da agenda de sustentabilidade e direitos humanos”, pontua a gestora da Aliança. Leite adiciona que, para as empresas privadas que quiserem contribuir, caberão produtos específicos, especialmente setoriais.
“O que queremos, de fato, é garantir capilaridade das ações para mover a régua de direitos humanos e sair da estatística triste que só 2% das empresas no Brasil faz devida diligência”, diz. Pereira, CEO do Pacto, lembra ainda que há uma tendência forte de este tema entrar na pauta corporativa com força a partir de agora e que seja algo cada vez mais cobrado pelo mundo. E, diz, a aliança é um lugar sério e com credibilidade em um momento em que muitas pessoas e consultorias se valem do frenesi de ESG para vender serviços sem o rigor necessário que o assunto exige.
Fonte: VALOR ECONÔMICO