A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) vai avançar com a regulação dos sistemas de inteligência artificial (IA) usados no Brasil sem esperar pela aprovação do marco legal da inteligência artificial, em fase final de discussão no Congresso Nacional. A informação é do presidente do órgão, Waldemar Gonçalves, que concedeu entrevista ao Valor.
Para Gonçalves, o órgão tem liberdade e dever de regulamentar a nova tecnologia quando existe proteção de dados pessoais.
“A gente não está se antecipando ao marco legal da IA no Brasil. Hoje, o Artigo 20 da LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados] já traz a obrigação de tratarmos das decisões automatizadas”, afirmou ele, em Barcelona (Espanha), onde participou do evento Mobile World Congress 2025 (MWC25). “O que a gente está regulando neste momento é esse artigo. Então, quando sair a lei, que vai trazer as obrigações de regulação da IA no Brasil, vão ter outros movimentos de regulação.”
Se existe dúvida sobre a ANPD dever ou não assumir a função de órgão regulador da IA no Brasil, o mesmo não ocorre com o enquadramento das plataformas sobre algoritmos usados nas redes sociais para atrair a atenção do público mais jovem, observa Gonçalves.
“Esse é um assunto da ANPD, com certeza. O cuidado com crianças e adolescentes faz parte não só da nossa agenda regulatória, mas também das quatro metas que a fiscalização definiu como prioridade neste momento”, disse o presidente, citando o cuidado com a proteção de crianças e adolescentes, o direito dos titulares, raspagem de dados – coleta indiscriminada de dados por sites – e reconhecimento facial.
Criada durante a pandemia da covid-19, a ANPD completará cinco anos em 2025. No ano passado, o órgão se notabilizou por abrir processos de fiscalização e enquadrar algumas das gigantes da tecnologia, as “big techs”, que controlam as maiores plataformas digitais.
Nos últimos meses, o órgão, que opera 100% com servidores públicos cedidos de outros órgãos federais, impôs determinações a companhias como Meta – dona do Facebook, Instagram e WhatsApp -, TikTok e X (antigo Twitter). Recentemente, o órgão suspendeu a coleta da biometria da íris dos olhos de brasileiros feita pela startup Tools for Humanity (TfH), que oferecia compensação financeira com criptomoedas worldcoin (WLD) a quem aceitasse fazer o cadastro.
No caso dos algoritmos empregados nas redes sociais, Gonçalves admite que é necessário uma melhor fiscalização, com possibilidade de impor eventuais sanções às propagandas direcionadas para o público jovem. Para ele, esse tipo de propaganda não é proibido, mas é preciso saber se o “perfilamento” – coletar informações do cadastro e do comportamento do usuário nas redes – está sendo usado para personalizar conteúdo, direcionar propagandas ou fazer impulsionamento.
“A propaganda direcionada não é proibida, pode fazer, mas não para crianças e adolescentes, que muitas vezes não têm ainda a maturidade para analisar esses conteúdos”, afirmou Gonçalves. Segundo ele, o direcionamento inadequado de propagandas pode induzir jovens ao uso de jogos, além de estimular comportamentos “não aprovados” pela sociedade e principalmente pelos pais.
Para o presidente da ANPD, é preciso ainda exigir transparência sobre a forma como os algoritmos coletam e usam dados de crianças e adolescentes. “É importante deixar claro que o comportamento de cada usuário nas redes sociais é um dado pessoal, relacionado diretamente àquela pessoa”, disse.
No evento de tecnologia em Barcelona, Gonçalves teve agenda com reguladores estrangeiros e algumas “big techs”, como a Meta, sempre tratando de privacidade e proteção de dados e uso de IA. Uma das interações institucionais foi com a Autoridade Europeia de Proteção de Dados (EDPB, na sigla em inglês). Na próxima quinta-feira (13), Gonçalves se se reunirá, em Madri, com a Autoridade Espanhola de Proteção de Dados (AEPD).
O presidente da ANPD explicou que já firmou um memorando de entendimento com a agência espanhola, que prevê troca de informações e compartilhamento de experiência em práticas de regulação. “A Espanha lançou um software que recebeu três prêmios na Europa pelo uso de ferramentas de reconhecimento de idades. Isso, então, nós também vamos buscar. Vamos entender como isso está sendo feito, avaliar se podemos aproveitar no Brasil”, antecipou.
No evento, em Barcelona, especialistas em regulação discutiram o papel dos governos frente à concentração de mercado das “big techs”. O debate ocorre no momento em que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defende maior liberdade para empresas americanas do ramo de tecnologia, enquanto a União Europeia (UE) estreia com nova regulação dos sistemas de IA, o AI Act, considerada mais restritiva.
“Vejo que as ‘big techs’ alcançaram um valor absurdo. Se você olhar o patrimônio delas, são os nossos dados, o conjunto de dados pessoais dos cidadãos do Brasil e do mundo”, reforçou o presidente da ANPD.