Um dos pontos centrais em relação às acusações de fraude na Americanas, que tem causado estranhamento entre analistas e varejistas, refere-se ao tamanho dos lançamentos artificiais com verbas de propaganda e outros incentivos comerciais.
Nos últimos dias, há uma pergunta recorrente no mercado sobre o valor em si, muito fora dos padrões do setor, mesmo considerando que são contratos fictícios de bonificações, como o grupo relatou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Americanas, na terça-feira.
O Valor conversou com executivos e conselheiros sobre o tema, e nas palavras de um membro de conselho de varejista há 15 anos, “seriam necessárias décadas de um esquema de criação de contratos frios para se chegar a mais de R$ 20 bilhões em fraudes acumuladas”, como relatado pela rede na terça-feira, em nota ao mercado. “E décadas sem ninguém ter visto nada?”.
Na visão da atual direção, seria impossível identificar os desvios, considerando que havia falsificações de documentos e alterações de dados pelos ex-executivos por anos. Apesar disso, os balanços anuais da rede, aprovados pelo colegiado e auditoria independente, já mostravam somas bilionárias em acordos comerciais, chegando a dois dígitos da venda total anual.
A Americanas registrava, de janeiro a setembro de 2022, último balanço disponível, R$ 1,24 bilhão na cifra de acordos comerciais (que incluem bonificações da indústria), para uma receita com venda de mercadorias e serviços de R$ 20 bilhões – ou seja, equivalente a 6% da venda. No ano anterior, até setembro de 2021, representou 10% da venda, segundo as notas explicativas das demonstrações contábeis. Um ano antes, chegou a 9,5% na operação física da Lojas Americanas.
Isso raramente passa de 1%, 2%, no máximo, até porque se perde o controle. Não dá para entender como conseguiram criar algo desse tamanho. É uma estrutura complexa para gerenciar, parte dos contratos ainda são manuais, então é fácil se perder. Por isso, há dúvidas no setor sobre o que a Americanas relatou. E antes falavam de risco sacado, agora não falam mais. Ainda está confuso”, diz um vice-presidente comercial de uma rede. “Teria que ser um sistema de operação muito estruturado em várias áreas. Isso pode explicar a demissão de cerca de 30 pessoas após a descoberta”, diz uma segunda fonte. Essas demissões foram informadas pela Americanas.
“Décadas sem ninguém ter visto nada?”, diz um conselheiro de uma varejista
No Carrefour Brasil, a maior varejista no país e segunda maior da América Latina, foram R$ 248 milhões em verbas comerciais a receber até setembro de 2022, apenas 20% do que a Americanas relatou, para um negócio bem maior no Carrefour, de R$ 80 bilhões em venda de mercadorias no período.
No Magazine Luiza foram R$ 337,3 milhões em valores de bonificações de fornecedores até setembro de 2022, para uma venda de R$ 30,7 bilhões, cerca de 1%. No ano anterior, também era nessa faixa, de 1,1%.
Em outro cálculo, o peso dos acordos comerciais da Americanas, na conta de fornecedores, equivalia a quase 20% até setembro – no Carrefour, era de 2%. Existem diferentes tipos de bonificações, e a Americanas centrou suas acusações à ex-diretoria à verba de propaganda. O grupo recebia descontos sobre itens comprados da indústria se atingisse metas de vendas em ações publicitárias. A atual direção afirma que contratos “frios” foram criados para inflar as verbas por anos.
É preciso considerar que o tema das bonificações é encarado, há décadas, com cautela e desconfiança pelos analistas e investidores, após vários escândalos contábeis em redes pelo mundo, exatamente sobre fraudes em acordos comerciais. Outros países fizeram mudanças em suas regras contáveis, após descobertas de fraudes em empresas, como a holandesa Ahold e a americana Walmart, mas no Brasil, não há publicações de ofícios da CVM sobre esse tema.
Os ofícios servem para reforçar, para as empresas, regras a serem respeitadas na elaboração das demonstrações sobre algum tema específico – muitas vezes, a CVM publica esses ofícios quando verifica “desvios” e quer reforçar alertas.
Na contabilidade, os acordos comerciais têm que ser declarados na linha de contas a receber, na parte dos ativos, ou na conta de fornecedores. E na demonstração de resultados, como redutor do custo de mercadoria.
A auditoria externa da Americanas, para os balanços dos anos de 2016 a 2018, já havia chamado a atenção, por três vezes, que era preciso fazer “melhorias nos controles internos” da operação, em decorrência de acordos comerciais entre a rede e seus fornecedores.
A auditoria da época, a KPMG, considerou esse assunto “significativo” por causa da “relevância” dos valores, do alto número de transações, “algumas de natureza complexa. Ao fim das análises nas três vezes, classificou a questão como “aceitável”.
“Conselho de administração e comitê de auditores da rede poderiam pedir uma auditoria interna específica dessa linha? Claro que poderiam, mas, muitas vezes, se o auditor independente considera o tema aceitável no parecer, se vira a página e vida que segue”, diz um membro de conselho de uma varejista de supermercados.
Na terça-feira, na CPI, a empresa disse que há documentos que indicam que KPMG e a PwC, atual auditoria, teriam amenizado o teor de pareceres sobre alguns temas, mas não especificou o assunto. Logo, não é possível saber se esse suposto acerto envolveria as bonificações. Sobre o tema, a Americanas informa em nota que, como foi dito na sessão da CPI, nas fraudes envolvendo as auditorias, as informações precisam de mais contexto porque documentos falsificados foram apresentados às auditorias, por parte dos ex-diretores.
Fonte: VALOR ECONÔMICO