Nos reinos dos estados o pau que bate em Chico não bate em Francisco. Pelo menos quando o assunto é direito tributário e envolve tributos estaduais.
O princípio constitucional da não-cumulatividade tem no ICMS o seu maior destinatário. Maior não só pelo volume de arrecadação que gera, mas também pela complexidade das situações exigentes de atenção quanto à aplicação do princípio.
A Constituição, em poucas palavras, definiu a operacionalização da não-cumulatividade prescrevendo a regra geral de que, na apuração do ICMS devido, será utilizado o crédito recebido junto com as mercadorias adquiridas; e definiu também as exceções, isto é, as hipóteses de não geração desses créditos e as hipóteses nas quais, apesar de gerados, os créditos não se prestam para aquela compensação e devem ser anulados.
Daí, a primeira inferência é de que o comando constitucional não é exemplificativo nem é carta de recomendação, e que, portanto, em relação à aplicação do princípio da não-cumulatividade ao ICMS é definitivo o que está prescrito.
Temos insistido que há, por parte dos estados, certa aversão em seguir os comandos constitucionais tributários na sua íntegra e com a mesma disposição com que cobra tal atitude dos contribuintes. São comuns tentativas de reescrever textos constitucionais, ora mediante alterações na legislação tributária local, ora mediante simples interpretação que mais lhes favoreça. O problema, para os contribuintes, obviamente, é que estas “tentativas” geram efeitos jurídicos, porque entram no Ordenamento, e, se a entrada no Ordenamento dá-se de forma irregular, a sua retirada não deve seguir o mesmo caminho.
A LC 190/22, introdutora no difal na sua nova versão, dentre outras inovações, pretende inserir no Ordenamento a figura da não-cumulatividade parcial, mediante a qual impõe limites à utilização dos créditos, que só poderão ser utilizados para apuração, nas operações interestaduais com destinatário não contribuinte, do ICMS devido ao estado de origem, mas não também para a apuração do difal devido ao estado de destino.
Observem que na versão anterior do difal essa operação interestadual era tributada com alíquota interna do estado de origem, a base de cálculo era definida com base na alíquota interestadual, e a apuração do ICMS devido era calculado mediante o aproveitamento dos créditos para a compensação com o valor total do ICMS incidente, e não apenas em parte.
Outra inovação trazida pela LC 190/22 é quanto à definição da base de cálculo da operação interestadual, que agora deve ser feita com base na alíquota interna da mercadoria no estado de destino. O argumento utilizado para justificar a alteração é de que isso é mais de acordo com o ICMS a ser repartido, pois se a operação fosse tributada com alíquota interna, como de fato é se considerar a soma da alíquota interestadual com a alíquota do difal, não há razão para o seccionamento e a feitura do cálculo do valor da operação com aplicação da alíquota interestadual. O argumento é falacioso, e mira, na verdade, apenas um aumento de arrecadação.
No nosso artigo anterior, a “parte 2” dos nossos comentários a respeito da LC 190/22, já abordamos essa inovação, quando assim esclarecemos:
Esse argumento é sedutor e tem ares de procedência jurídica porque amparado numa demonstração matemática, que, contudo, apesar de se respeitar a lógica matemática, há se entender que a lógica jurídica é outra, que nem sempre com aquela coincide. Dito de outro modo, o que se tem no argumento do estado é o apego à uma realidade que não é a realidade do direito, pois na realidade do direito a operação interna é diferente da operação interestadual.
Tal diferença, que antes já existia, é agora muito mais evidente, porque envolve relações tributárias distintas e autônomas. A primeira delas entre o estado de origem e o contribuinte nele localizado. A segunda, entre o estado de destino e o contribuinte nele localizado, e a terceira, entre o estado de destino e o contribuinte localizado no estado de origem.
A incoerência da LC 190/22 surge exatamente do confronto destas duas inovações, pois para forjar um aumento de arrecadação usa-se o argumento da unificação mediante a base única, obtida na definição do valor da base de cálculo da operação com aplicação da alíquota interna no estado de destino, ao passo que, por outro lado, para burlar o direito do contribuinte à não-cumulatividade total nega-se esse argumento da unicidade e prega-se a separação, prescrevendo que os créditos das operações anteriores somente podem ser utilizados na apuração do ICMS devido ao estado de origem.
A fúria arrecadatória faz a LC 190/22 limitar a não-cumulatividade para apenas uma parte do ICMS devido, com o que admite que se tratam de duas obrigações tributárias e, consequentemente, de duas relações tributárias distintas, ao mesmo tempo em que considera operação única ao prescrever que a base de cálculo é única e apurada com base na alíquota do destino.
Se o difal é ICMS, e quanto a isso não resta a menor dúvida, dúvida não há também de que o seu cálculo sujeita-se às regras constitucionais aplicáveis ao ICMS, dentre as quais as prescrições e exceções relativas ao princípio da não-cumulatividade.
Se os estados oferecem uma razão para a mudança no sistema da definição da base de cálculo da operação interestadual, ele deve oferecer uma razão também para a negação da não-cumulatividade no cálculo do difal, o que, pensamos, não vai além do argumento retórico da cambaleante situação financeira, sempre pronto para justificar as contrariedades ao Ordenamento jurídico.
Se ao intérprete aplicador é permitido construir a norma constitucional, é preciso lembrar que esta construção tem por base o enunciado prescritivo, e que a interpretação, processo necessário para a construção da norma, tem por guia o Ordenamento, não podendo dele discrepar sob pena de resultar situação que a ele não se amolda nem com ele convive harmonicamente.
Carlos Maximiliano ensina que “…dentro da letra expressa, procura-se a interpretação que conduza a melhor consequência para a coletividade”1, e aí o problema tende a se agravar em desfavor dos contribuintes, pois o estado veste a roupa da “coletividade” e se apresenta como o seu representante, o que de fato é, mas ele confunde as situações e tem uma crise de identidade, pois não sabe conviver com o duplo papel que precisa representar quando no âmbito tributário, no qual além de defensor da coletividade ele é também parte na relação tributária, o que o faz tratar os seus interesses arrecadatórios como se fossem interesses da coletividade.
Os interesses da coletividade possuem como núcleo o bem comum, que, na lição de Humberto Ávila2 “… é a própria composição harmônica do bem de cada um com o de todos; não o direcionamento dessa composição em favor do ‘interesse público'”.
O uso do termo “interesse público” é um convite à confusão que o estado faz, o que na lição de Humberto Ávila configura-se um problema que “…não é propriamente a descrição e a explicação da importância do interesse público no ordenamento jurídico brasileiro, mas o modo mesmo como isso é feito”, que segundo, ele, nada mais seria do que uma regra de preferência, determinante de que, na possibilidade de conflito entre o interesse público e o particular, seja a solução, em abstrato e em princípio, a favor do interesse público.
E deve ser assim, porque segundo complementa, “Em vez de uma relação de contradição entre os interesses privado e público há, em verdade, uma ‘conexão estrutural'”, e por isso, os interesses privados “…não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins”, porque “elementos privados estão incluídos nos próprios fins do estado”. Em resumo, interesse público e privado estão em harmonia na busca do bem comum.
No caso presente, não há um conflito pré-existente opondo interesse público e privado, mas sim um conflito jurídico criado pela LC 190/22, que decidiu enfrentar a Constituição em defesa do interesse do estado como parte na relação tributária, de modo que não pode o estado ser beneficiário da própria torpeza e ter a solução a seu favor.
A antinomia interna da LC 190/22 deve ser solucionada pela hierarquia, pois está em jogo a prevalência do texto constitucional frente à LC 190/2022, confronto do qual a lei complementar não pode sair vencedora.
Ou então, conforme ensina Humberto Ávila, a contradição pode ser solucionada pela introdução de uma regra de exceção, ou pela decretação da invalidade de uma das regras envolvidas3.
A regra de exceção traria previsão de não aplicação da não-cumulatividade para o difal, colocando-o nas exceções constitucionais, mas isso deveria constar na EC 87/15. Como não constou, a solução será pela decretação de invalidade do artigo 20-A da LC 87/96, introduzido pela LC 190/22.
O bem comum assim espera, pois o princípio da isonomia não consente com o privilégio pretendido pela LC 190/22 em favor do estado.
Fonte: artigo publicado originalmente no Migalhas.